Maria Madalena e os Testamentos
«(…) Foi no Novo Testamento que
primeiro surgiu uma personagem chamada Maria
de Magdalo. É identificada com uma pecadora convertida que segue Jesus
até casa de Simão, do Leproso, ou do Fariseu, lhe unge os pés e os limpa com
seus belos e longos cabelos. Torna-se, também a primeira testemunha da
Ressurreição, sozinha, ou na companhia de outras mulheres. Há algumas
ambiguidades nesta representação. A tentativa de as esclarecer deu origem à
escrita de centenas de tratados principalmente durante os séculos XVI e XVII. A
dúvida era se Madalena seria
uma única identidade, uma única mulher que aparecia nas várias cenas
evangélicas, ou se os evangelistas se referiam a duas, ou mesmo três, mulheres
diferentes. Teremos que considerar um outro aspecto mais complexo, que tem a
ver com a fidedignidade histórica do Novo Testamento, com as possíveis datas de
escrita e fixação dos textos e ainda com o momento da aceitação destes como cânone.
Além disso, veremos que problemas podem suscitar algumas opções de tradução e
como podem afectar a interpretação que se faça de Madalena.
Datações do Novo Testamento
O consenso geral é que as Epístolas de S. Paulo antecedem em
cerca de vinte a trinta anos os textos do Novo Testamento. Estas Epístolas
são tomadas como baliza por serem os escritos mais antigos que nos chegaram com
garantia de autenticidade histórica. Isto quer dizer que os Evangelhos
foram redigidos cerca de 60 a 80 anos depois da morte de Jesus. A
redacção final dos Evangelhos de Mateus e Lucas deve rondar os anos 80-85 d.C..
O mais antigo dos evangelistas, Marcos, terá escrito o seu Evangelho
entre 62-67 d.C. e o Evangelho de João datará de finais
do século I. Sobre essas décadas determinantes possui-se muito pouca
informação. Toma-se como boa fonte os Actos dos Apóstolos atribuídos a Lucas,
que dão alguns detalhes sobre esse período. Já se descobriu que, afinal, foram
escritos trinta anos mais tarde, quer dizer que são praticamente contemporâneos
dos próprios Evangelhos.
Adianta-se desde já que em nenhuma das suas Epístolas Paulo refere Maria Madalena. Em muitas pede que
defendam o rebanho contra os desvios à ortodoxia. É patente a sua preocupação
com os problemas internos das comunidades a surgir entre os anos 80-100 d.C..
Assim, nascidos em finais do século I da era cristã, os Evangelhos só começam a ser
sistematizados no século seguinte. Coincidem com o desenvolvimento da dogmática, o esforço de reflexão para
organizar os princípios e regras cristãos que vão fundamentar a tradição
apostólica. Esta tradição nasce de relatos escritos e orais que se perderam e
que, de quando em vez, são em parte recuperados. Assim aconteceu com o Papiro
Magdalen, um fragmento do Evangelho de S. Mateus recentemente
descoberto entre os Manuscritos do Mar Morto, onde se registam excertos da cena de
Pedro, datado do ano 70 d.C. ou talvez mesmo anterior.
Isto para dizer que se torna praticamente impossível, por enquanto, pelo menos,
aceder com segurança às fontes evangélicas. Por outro lado, esta situação atesta
que o papel dos evangelistas foi também o de historiadores preocupados em
recolher os materiais acessíveis ao seu tempo, trabalhá-los, dar-lhes alguma consistência
e perenidade. Para o nosso caso não interessa muito se existiram, ou não,
textos anteriores que se tenham perdido, mas apenas que o corpus neo-testamentário, construído a partir de informações
pré-existentes e em ambientes culturais não só diversos, mas sem comunicação
clara entre si, oscila durante pelo menos dois séculos.
E dois séculos de enorme turbulência em todos os sentidos. Começa por ser preciso
estabelecer uma regra idêntica para todas as comunidades que se consideram cristãs.
A ortodoxia vai-se consolidando contra, e em função de, os diversos erros
como uma ilha de sedimentos que surge num mar de contradições. Tem que se
afirmar, primeiro que tudo e pelo menos:
- contra a tradição judaico-rabínica a que Jesus pertencia;
- contra as religiões de mistérios ainda em força;
- contra as deturpações gnósticas;
- num tempo e espaço em que as comunicações eram morosas e difíceis, a sociedade praticamente analfabeta, falando as línguas mais diversas.
A descoberta recente dos Manuscritos do Mar Morto, a
publicação dos Evangelhos Gnósticos da Biblioteca
de Nag Hammadi, a celeuma ainda há pouco suscitada pelo Evangelho
de Judas, dá-nos um pequeno vislumbre da caldeirada ideológica em que
se moveriam os fundadores do cristianismo e da necessidade de se instituir, por
escrito, um cânone dos textos sagrados aceitáveis. Assim, o Novo
Testamento vem a estabelecer-se em pleno período helenístico, a partir
de, e contra, outras versões contemporâneas, em particular as primeiras
formulações de carácter herético.
- Sabe-se que em finais do século II as Epístolas paulinas já estavam organizadas numa colecção;
- que era aceite a autoridade de Os Actos dos Apóstolos, hoje posta em causa;
- que tinham sido estabilizados como base teórica também os quatro evangelhos que conhecemos.
Sabe-se ainda que a selecção dos textos canónicos vai sendo feita de modo
gradual e hesitante, com inclusões e exclusões, e por motivos nem sempre muito
históricos no moderno sentido do termo. Ireneu de Lião (130-202 d.C.),
argumentando por analogia a partir da existência de quatro elementos na
Natureza, considera que os Evangelhos também não poderiam
ser menos que quatro. Os Evangelhos do Novo Testamento aparecem
registados nas listas elaboradas desde o Cânon
de Muratori (Roma, c.180-200) mas entre outros textos que vão sendo sucessivamente
recusados e eliminados por vários dos padres da Igreja. Por exemplo, o Codex
Sinaiticus, do século IV, adiciona-lhe a Epístola de Barnabé e O Pastor
de Hermas. Em 367 d.C., uma Carta sobre a Quaresma atribuída ao bispo
Atanásio de Alexandria (295-373d.C.) listava os livros do Antigo e do Novo Testamento a serem
reconhecidos pela Igreja, e quais os heréticos que haviam sido escritos de modo
a parecerem contemporâneos dos apóstolos. O Codex Alexandrinus, do século V,
acrescenta-lhe duas Epístolas aos
Coríntios atribuídas a Clemente de Roma (Papa entre 88-90). O Codex
Claromontanus, de Paris, do século VI, inclui a Epístola de Barnabé, O Pastor
de Hermas, A Revelação de Pedro e
os Actos de Paulo. Referem-se aqui
estes textos porque eram conhecidos na Idade Média portuguesa e foram
estudados por Mário Martins». In Helena Barbas, Madalena,
História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT