Introdução
«(…) Pelo século XVI dá-se uma grande transformação na abordagem e
representações de Madalena,
principalmente em consequência das Reforma e Contra-Reforma, concentradas nas
propostas do Concílio de Trento. Rebenta também neste momento a grande querela
francesa sobre os enigmas da identidade da(s) Maria(s) evangélica(s). Em
Itália é escrita uma nova versão da lenda, a Rosa Aurea, que vai tentar desligar Madalena da vida de Cristo, censurar e rasurar todos os
momentos em que entram em diálogo, inclusive os presentes nos textos canónicos.
É também neste texto que Madalena
passa a estar associada ao Graal. A partir de todas estas contribuições torna-se
possível delinear uma biografia imaginária
de Maria Madalena, conjugando
todos os episódios e todas cenas que os séculos lhe foram atribuindo, já que o
próprio das lendas é absorver em si todos os esforços, tanto os de
acrescentamento quanto os de rasura, engordar e enriquecer-se à conta deles.
Destas caracterizações exteriores e psicologizantes começa a delinear-se
uma identidade, e uma individualidade para a personagem. A partir do literário,
vários autores tentam submeter Madalena
ao ideário pretarquizante do tempo. Têm que se confrontar com as
decisões saídas de Trento e obedecer aos decretos.
O amor de Madalena é reconduzido
ao profano, a sua imagem começa a invocar metáforas nacionais, torna-se Leonor. Enquanto mito amoroso começa a aproximar-se da figura de Inês de Casto. Em termos
internacionais a ópera italiana recupera a castelã medieval. Exibe uma
personagem algo libertina que nos chega por via das traduções. O esforço
francês para criar uma epopeia magdaleniana tem eco em dois poemas nacionais
directamente inspirados por Camões. Provam estes que, literária
e pictoricamente, o problema da identidade de Madalena fica resolvido desde os primórdios. O seu peso como
figura, as acções e gestos que lhe são atribuídos, exigem que seja uma única
personagem. Só assim pode transformar-se, inclusive, em heroína épica da
demanda amorosa, uma nova Inês. Um outro caminho que reforça a recondução ao
profano é o seguido pela literatura edificante que procura domar Madalena tornando-a doméstica.
Tudo isto a desaguar nas paródias à personagem e seus gestos:
- Madalena torna-se lavadeira, Leonor a caminhar descalça pela calçada.
Nos países protestantes, após a Reforma, Madalena devém símbolo da distância entre o homem e Deus.
Desce até ao Sul representada como figuração da Melancolia. Uma herdeira
da acédia, a exibição do sofrimento causado pela influência astrológica do
planeta Saturno, vai transformar-se no mal-de-vivre
e no spleen. O espelho é o das
vaidades e o crânio um espelho funesto. Madalena
converte-se na cortesã francesa ou pré-rafaelita. Mantém a qualificação que
quase nunca a abandona, a prostituta.
Carregada agora com a doença da melancolia é fácil aos nossos autores
simbolistas recuperarem-na, junto com Salomé, como exemplo da figura das
mulheres fatais.
Madalena fica
posta em sossego durante as duas Grandes Guerras. É resgatada pelo revivalismo hippy dos anos de 1960, pelos novos feminismos, como exemplo de um poder matriarcal
perdido e recuperável. Regressa em 1970
como Superstar, diva na ópera-rock e
no cinema. Já no século XXI há um segundo surto desencadeado pelo polémico best-seller mundial, o Código Da Vinci, 2003,
que sobre ela dirigiu os olhos do mundo. As lendas são recuperadas e deturpadas,
Madalena é associada ao Graal
e aos Templários. Rebenta a quarta querela da identidade com as
pseudo-descobertas de novas relíquias e interessantes consequências científicas.
Em Portugal, caminha da lenda a uma reformulação do mito. Surge na pintura de
Paula
Rego que lhe chama Bruxa Branca
e exibe-se como eremita mística em Barahona Possolo. No teatro vão ainda
ecoar as paródias, surgindo negra e pulverizada. No geral encontramos a
reescrita de ecos antigos também na poesia. Na prosa, José Saramago
transforma-a numa nova Diotima. Já no
século XXI, por interferência das novas importações surge-nos um ensaio. No
teatro Madalena é reconduzida
ao seu esplendor gnóstico por Armando Nascimento Rosa; encontra uma
actualização verdadeiramente inédita do seu mito no romance de Rui
Zink. Em 2007 estreia-se a
versão portuguesa de Jesus Cristo SuperStar. Em todos os momentos irão ser
dados exemplos da sua representação literária e pictórica e dos modos como foi
sendo recebida em Portugal, na Península. Madalena
chega-nos por importação, de França, de Itália por via de Espanha. Far-se-á,
pois, uma pequena resenha das grandes diferenças que por tal apresenta relativamente
às tradições estrangeiras. Maria de
Magdalo é uma figura do nosso património colectivo, exibe as marcas das
mudanças e evolução dos modos de pensamento e filosofias, da história psicológica
do Ocidente, pertence ao campo da História das Ideias, exige uma abordagem
Comparatista.
Enquanto mito, desempenha uma
função no mínimo terapêutica, e não deverá ser tratada de ânimo leve. Diz-nos Jung
que, quando há coincidência em testemunhos vindos de origens diversas, quando o
tema renasce após séculos de aparente desgaste, é prova que se pode estar em
presença de um Arquétipo. Assim, o tema de Madalena
pertencerá ao depósito das imagens proto-arcaicas do inconsciente colectivo
cuja manifestação, e leitura, relevam da ordem da linguagem do sonho e/ou do
sagrado». In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT