Fascinação do Ermo
«(…) Não ignorava,
quando desceu aos mercados da cidade, nem a fortuna incomparável da solidão nem
a profundeza do esqualido tremedal onde ia arriscar a saúde do corpo e a paz do
espirito, para estender a mão aos desventurados que n'elle se afogavam; mas incitava-o
e arrebatava-o a esperança de levar opulentissimos thesouros aos estranhos que tanta
miséria soffriam.
E eu comparei o
solitário obscuro
ao inquieto filho das
cidades:
comparei o deserto
silencioso
ao perpetuo ruido que
sussurra
pelos palácios do
abastado e nobre,
pelos paços dos reis; e
condoí-me
do cortezão soberbo que
só cura
de honras, haveres,
glorias que se compram
com maldições e perennal
remorso.
Oh cidade, cidade que
trasbordas
De vicios, de paixões e
de amarguras!
……………………………………….
Soberba prostituta
alardeiando
os theatros, e os paços
e o ruido
das carroças dos nobres
recamadas
de ouro e prata, e os
prazeres de uma vida
tempestuosa e o tropeiar
continuo
de fervidos ginetes que
alevantam
o pó e o lodo cortezão
das praças
……………………………………….
Braqueado sepulcro, que
misturas
a opulência, a miséria,
a dôr e o goso
honra e infâmia, pudor e
impudecicia
in Poesias
Destroçada a esperança pelos repetidos vendavaes da desillusão, voltava
ao ermo a que jurara fidelidade antes de se empenhar no combate.
Bello ermo! Eu hei de
amar-te emquanto esta alma
aspirando o futuro além
da vida
e um hálito dos céus, gemer
atada
a columna do exilio, a
que se chama
em lingua vil e
mentirosa o mundo.
Eu hei de amar-te, oh
valle, como um filho
dos sonhos meus. A
imagem do deserto
guardal-a-ei no coração,
bem junto
com minha fé, meu único
thesouro.
In Poesias
Ao fim de incerta jornada, o peregrino vinha cumprir a promessa que ao
partir fizera nos altares da sua crença, da verdadeira pátria dos seus sonhos,
onde tinha em recompensa a liberdade.
Feliz ou infeliz, triste
ou contente
Livre o poeta seja.
De facto, libertou-se.
E, libertando-se, em toda a sua magestade se mostrou, na atmosphera a que
anciosamente aspirava, fora d'aquell'outra que o desfigurava pela incessante coacção
das suas energias caracteristicas.
Pouco indulgente com a
sensualidade, porventura deshumanamente rigoroso com os seus impulsos, a solidão e a vida rural não
seriam para Alexandre Herculano
isenção de fadigas physicas e desenlace d'aspirações naufragadas, adormecimento
de mágoas e repouso n'uma animalidade cuidada, bem mantida, satisfeita e
robusta. Não seriam uma festa lauta dos sentidos, por demais castigados da
escuridão da cidade, mas uma devoção gratissima do espirito desonerado de
temporalidades que o mortificavam, tão pesadas pelo tumulto e pressão
ininterrompida, como estereis pela inanidade das consequências moraes. Amando o
ermo e procurando-o, não o chamava a delicia pagã; se tanto lhe queria, era por
obediência religiosa, porque alli melhor interpretava e cumpria a vontade do
Senhor. O sentimento da alegria e equilíbrio no pulsar livre da natureza, a
contemplação da harmonia e beleza das formas que por si vivem como divindades
independentes e distinctas, só por excepção prenderiam Herculano. E' um accidente raro, muito raro, que elle se quéde com sympathia
a escutar nymphas do rio, dryades da floresta e as felizes gentes dos reinos de
Apollo. Por duvida teria condescendido em attentar nas crueldades e exaltações orgíacas
das estações e dos astros. Se por elle passaram faunos e bacchantes ou lhes
suspeitou os folguedos, voltou o rosto descontente; os olhos habituados a luz
divina, vinda dos céus, e outra não procuravam, não supportariam fumo e
labaredas, ateiados com o sangue e erguidos dos infernos em que penam condemnados.
Mal sorriu ao carvalho magestoso que encontrou em meio do valle. O quadro captivou-o um rápido instante.
Cortesia de wikipedia
Mal sorriu ao carvalho magestoso que encontrou em meio do valle. O quadro captivou-o um rápido instante.
Na primavera
vinham os moços
adornar-llie o tronco
de capellas cheirosas de
boninas,
e coreias gentis
traçar-lhe em roda;
In Jayme de Magalhães Lima, Alexandre Herculano, DD 5369 H4M3,
Typographia F. França Amado, (rua Ferreira Borges, 115) Coimbra, 1910.
Cortesia de Typographia França
Amado, 1910/JDACT