terça-feira, 11 de junho de 2013

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «Era a altura em que os grandes negócios se tinham já feito, e restavam as pequenas trocas, daqueles que tinham hesitado até ao último minuto, ou então dos homens da montanha, os mais desconfiados, que só depois de verem longamente o comportamento dos animais…»


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«(…) Evitava olhar-se ao espelho, o que só piorava a situação quando, por vezes, dava com o seu reflexo nalgum vidro, e via um rosto a que se tinha acrescentado mais um traço de velhice, rugas, olheiras, cabelos brancos. Não identificava já esse corpo em que se arrastava consigo próprio: não sabia como tinha ido parar dentro daquele invólucro físico que o assustava, com os sinais de um fim que não desejava mas para que não via outra saída. Já antes, porém, tivera momentos em que se aproximara daquele estado, embora tivessem sido passageiros, na altura dos mercados de gado que, no Outono, traziam gente de toda a região ao terreiro onde se negociavam cavalos, bois, porcos, ovelhas, arreios, selas, máquinas, e onde se ferravam mulas, se trocavam promessas ou notas, se comia e se bebia em excesso, sabendo que esse dia anunciava o fim de um ciclo de vida, na véspera da estação que ia acabar com a festa do sol e fechar toda a gente em casa, nos meses de frio e chuva. Era nesses dias que uns homens alugavam o seu serviço insólito, recebendo os bácoros que lhes levavam para que eles, com um canivete afiado, os capassem, provocando guinchos que rompiam os tímpanos.
Era um espectáculo que o impressionava, sobretudo ao ver o modo como os homens não hesitavam no gesto emasculante, e nos grupos que se formavam à sua volta, rindo com o sofrimento dos animais. Com a mão na algibeira, tocava o sexo, para se certificar então de que mantinha intacta a sua virilidade; mas apercebia-se ao mesmo tempo da efemeridade das coisas, o que o impedia de realizar certos negócios para que é necessário um espírito mais disponível e menos angústias. O vento, e partir da tarde, começava a levantar a terra, que deixava uma película castanha nos chapéus, entrava pelos olhos, sujava as lentes dos óculos. Era a altura em que os grandes negócios se tinham já feito, e restavam as pequenas trocas, daqueles que tinham hesitado até ao último minuto, ou então dos homens da montanha, os mais desconfiados, que só depois de verem longamente o comportamento dos animais, de lhes terem apalpado o corpo em busca de inchaços suspeitos, ou olhado a dentição, é que puxavam da carteira e tiravam as notas atadas com cordel, as contavam uma a ume, duas ou três vezes, e lá acabavam por sair com o seu troféu, que iriam alimentar durante um ano para, no ano seguinte, se nada acontecesse, e para isso é que as mulheres haviam de fazer as promessas, que no dia da procissão iriam pagar ao adro da igreja, lhes renderia o triplo do que tinham dado, naquele mesmo sítio.
Era não contar com epidemias, com secas, com acidentes: mas não havia que pensar nisso, que obrigaria a que nada se fizesse e a que o mundo parasse nos seus eixos. Pelo contrário, uma força ancestral obrigava a que os homens se lançassem nesses pequenos negócios, esperando que o dinheiro lhes servisse, um dia, para comprar um pedaço de terra, que já não lhes serviria a eles, mas aos filhos, embora os filhos, quase sempre, acabassem por partir para a cidade e deixar ao abandono essas terras ganhas com o trabalho de uma vida.
O senhor ficava até ao fim: esperava que as tendas se levantassem, que os ciganos desmontassem as suas bancas, e formassem as caravanas em direcção à feira seguinte, e só então ia até ao centro da cidade, observando no caminho os grupos que se tinham juntado no interior das tabernas, onde as bebedeiras eram já evidentes, na preparação de excursões ao bordel que, nesses dias, tinha um ganho acrescentado. O céu tinha-se já coberto inteiramente de nuvens negras; e os primeiros pingos iam começar a cair ao fim do dia, prevendo uma noite de aguaceiro que iria surpreender os homens da montanha, tapando-se com as suas mantas, e avançando com dificuldade nos caminhos de terra transformados em lamaçais, mas avançando apesar de tudo, certos do caminho, porque só os homens da cidade é que se podem dar ao luxo de ter hesitações». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT