Pressupostos mentais do culto dos mortos
«(…) Noutras culturas, ainda, as forças identificadas com os mortos aproximam-se
mais do domínio do bem e do mal, quer do ponto de vista físico, quer do ponto
de vista moral. Os mortos, benfazejos ou malfazejos, conforme a sua acção produz
efeitos positivos ou negativos, seriam os responsáveis pelo que de bem ou de
mal acontece aos homens. Estamos, de novo, num domínio contíguo do anterior, mas
mais próximo de concepções antropomórficas do invisível, sobretudo na medida em
que personifica a actuação das forças da natureza e as explica concebendo o mundo
invisível à imagem e semelhança da sociedade humana. Os mortos seriam, com
efeito, como que a personificação de forças maléficas ou benéficas, ou de
ambas, conforme decidissem castigar ou premiar os vivos. Uns mortos seriam
intrinsecamente malfazejos, como os homens ou mulheres criminosos e perversos
deste mundo; outros, radicalmente bons, como os bons patriarcas, as boas mães
ou os bons chefes, e os homens e mulheres virtuosos da sociedade visível. É
evidente a contiguidade de conceitos que presidem ao imaginário acerca da acção
positiva ou negativa dos bons e maus mortos com aqueles que presidem ao imaginário
acerca dos demónios, por um lado, e dos anjos e dos deuses, por outro. A
construção mental do reino dos mortos projecta no Além as estruturas morais da
sociedade.
Como é evidente, também, esta concepção acerca da acção dos mortos
sobre o mundo visível constitui um dos principais fundamentos de todas as
crenças religiosas. Por um lado, inspira as noções de bem e de mal e as
prescrições morais que incitam a praticar o bem e evitar o mal. Por outro,
determina as funções atribuídas aos especialistas do contacto com os mortos (ou
com o invisível e as forças nele situadas), os xamanes, os feiticeiros,
os sacerdotes, os gurus, os monges, o clero em geral, nomeadamente o privilégio da definição
daquilo que é o bem e daquilo que é o mal, como aquilo que agrada ou desagrada
aos mortos, às potências sagradas ou aos deuses. Em terceiro lugar, inspira as
acções rituais por meio das quais os homens tentam influenciar as potências
invisíveis, ou seja, os actos de culto e a liturgia. Com efeito, partindo do
princípio de que os mortos se comportam como os homens, e sobretudo como os homens
poderosos, os rituais destinam-se, em última análise, a captar a sua
benevolência. Como é evidente, utilizam processos simbólicos de restabelecer a
harmonia do mundo, ameaçada ou afectada pelo mal, neutralizam a força
destruidora do sagrado ou a perversidade dos espíritos malignos, protegem
contra as ciladas dos demónios, ou, se se preferir, dos mortos que se vingam
nos vivos dos seus infortúnios, e que prolongam a sua vida criminosa para além da
morte.
O imaginário acerca do mundo dos mortos não se baseia apenas na concepção
de forças invisíveis identificadas com os homens e mulheres que deixaram a
companhia dos vivos, nem apenas na atribuição ao mesmo mundo do comportamento
habitual dos poderosos (com todas as variantes de bondade, perversidade ou
arbitrariedade), mas também, sobretudo em sociedades mais evoluídas, nas experiências
dos estados oníricos ou visionários. Nesse caso, os mortos aparecem como
sombras, enviam as suas recomendações e mensagens através de sonhos, provocam
terrores ou revelam coisas escondidas. Embora no imaginário que releva de uma
experiência psicológica individual baseada num contacto (real ou fictício) com
os mortos prevaleça a sensação de medo, registam-se também relatos que acentuam
a experiência contrária. Não admira que estes tenham como protagonistas os bons
mortos (ou os anjos e santos) e aqueles os maus mortos (ou as almas penadas, os
condenados e os demónios). Mas pode também acontecer que o morto apareça para
transmitir uma mensagem ou dar uma ordem, e nesse caso o terror que inspira
resulta da especial autoridade de que é revestido, ou seja, dos terríveis
poderes de decretar a vida ou a morte.
Nesse caso, o terror não vem da sua bondade ou perversidade, mas das
convicções acerca dos seus poderes ocultos e sagrados. A sensação de medo, no
entanto, parece prevalecer de longe sobre a de proteção ou de consolação, uma
vez que se parte do princípio de que o morto traz normalmente a morte consigo.
O contacto com ele é, portanto, especialmente perigoso. Daí a infinita
variedade de rituais que procuram administrar o duplo sentido da relação com os
mortos: presidem à reprodução da vida, mas também transmitem a morte. Os
rituais do culto dos mortos destinam-se, portanto, a captar a sua benevolência,
mas ao mesmo tempo a marcar uma fronteira tão intransponível quanto possível
entre o seu reino e o reino dos vivos. Assim, por exemplo, o luto, ao marcar ou
isolar os parentes que estavam mais próximos do morto, destina-se justamente a
separá-los dos outros vivos, até que se dissipe o perigo da contaminação de
morte que eles podem transmitir (não se trata, evidentemente, de uma noção
biológica de contágio); as crenças acerca das almas penadas, que são propriamente
aquelas que não conseguem encontrar repouso, ou seja, que não ingressaram no convívio
com os antepassados, resultam sobretudo de elas serem como que mortos que não
estão totalmente mortos, e que por isso, ao permanecerem na fronteira entre
este mundo e o outro, perturbam e aterrorizam os vivos».
In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas
e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.
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