«(…) Mas em nenhuma
litteratura da antiguidade se exprimiu o sentimento religioso com tanta
simplicidade, força, doçura, nobreza e sublimidade como na litteratura hebraica.
Ainda nenhum escriptor antigo ou moderno conseguiu ser mais sublime do que Isaías,
nem mais sentimental e terno do que David, nem mais magestoso do que Moysés,
nem mais melancólico do que Jeremias. Na edade média apparece-nos o sublime Dante, o cantor do
catholicismo, produzindo essa obra prima intitulada A Divina Comedia, que
levará o nome do seu auctor á mais remota posteridade e que é uma das mais
bellas producções do espirito humano.
Nos tempos modernos foi
o sentimento religioso que inspirou a Milton a sua maravilhosa e sublime
epopeia O Paraizo Perdido, a Bossuet as suas eloquentes Orações
fúnebres e a Pascal os seus profundos e magestosos Pensamentos.
No século dezoito, nesse século philosophico e revolucionário em que fizeram
grandes progressos o scepticismo e a incredulidade e se propagaram com immensa actividade
as doutrinas que deviam produzir as grandes tempestades politicas e sociaes,
nesse grande século, ao qual devemos comtudo immensos benefícios, João
Jacques Rousseau, um dos mais eloquentes prosadores franceses, defendeu com
muito enthusiasmo a existência de Deus e a immortalidade da alma e exaltou a
moral evangélica, distinguindo-se pelo seu deísmo ardente, que elle manifestou
num estylo tão suave e harmonioso que faz lembrar o de Platão.
No século dezanove, o
século dos estudos históricos e da pbilosophia positiva, vemos o sentimento
religioso expresso com uma vivacidade admirável nas obras de Victor Hugo,
Lamartine, Chateaubriand, Manzoni, Walter Scott, Lamennais,
Renan, Thierry, Guizot, Michelet, Flammarion,
Tolstoi e muitos outros. Este sentimento sublime do coração humano
existe não só nos que professam o christianismo ou qualquer outra religião
positiva mas também em todos os sectários da religião natural. Como a religião
tem raizes profundas no coração do homem, hão de existir sempre, por mais alto
que se eleve a sua intelligencia, almas apaixonadas que se comprazam em estar
abrasadas no fogo sagrado do sentimento religioso. Eu não creio que este venha
a extinguir-se no seio da humanidade mas estou profundamente convicto de que
com o progresso da civilização a religião individual se ha de tornar cada vez
mais pura, isto é, se ha de ir libertando das superstições com que a têm
deturpado a imaginação e a ignorância dos povos e os interesses sacerdotaes.
Embora se derribassem os altares e se destruíssem os templos, a religiosidade havia
de existir perpetuamente no coração do homem porque bastaria a contemplação da
natureza magestosa e bella que nos circumda para despertar em nós a idéa mais
sublime a que se elevou a intelligencia humana, a idéa de Deus.
Se Herculano, além de ser um grande poeta, foi um dos prosadores mais
poéticos e eloquentes que têm existido em todos os séculos, que admira que o seu
espirito fosse eminentemente religioso. Todas as crenças são dignas do máximo
respeito comtanto que haja sinceridade naquelles que as professam. O homem
que não respeita as opiniões alheias é inimigo da tolerância e da liberdade,
por mais avançadas que parecam as suas idéas. O fanatismo
philosophico é para mim tão reprehensivel como o fanatismo religioso. Considero pois injusto, absurdo e ridículo o
deprimir Herculano por causa da sua paixão ardente pelo
christianismo, da sua crença em Deus e na immortalidade da alma, como o têm feito
alguns d'esses críticos superficiaes ou mal intencionados que costumam
apparecer em todas as epochas para depreciar as obras mais excellentes que tem produzido
o génio do homem.
E indubitável que o
christianismo exerceu uma influencia benéfica no génio litterario de Herculano. Foi nas paginas sublimes da Bíblia
que Herculano bebeu uma parte das
suas inspirações; foi no estylo bíblico que elle escreveu o terrível e
eloquente opusculo A Voz do propheta e os sublimes e dolorosos cantos do
presbytero de Carteia, que fazem parte do seu mais bello e magestoso romance, a
que deu o titulo de Eurico. Mas, no emprego do estylo bíblico, Herculano, longe de ser um simples imitador, revelou sempre a
poderosa originalidade que caracteriza todos os seus escriptos. Theophilo
Braga, na sua Historia do romantismo, diz que Herculano não se elevou acima da metaphysica christã; mas o
distincto professor esqueceu-se de accrescentar que no tempo de Herculano a maior parte dos grandes
espíritos que tanto illustraram o seu século nos paizes mais adiantados da
Europa e da America, se achavam no mesmo estado psychologico e que a
philosophia positiva ainda não conseguiu derribar o espiritualismo.
Em todas as escolas
philosophicas tem havido pensadores profundos. O espiritualismo christão não
impediu Herculano de ser um dos mais
eminentes historiadores do seu século, assim como não tirou mais modernamente ao
immortal Pasteur a glória de ser um sábio de primeira ordem, um dos
maiores bemfeitores da humanidade. Não obstante as grandes modificações por que
passou o altíssimo espirito de Victor Hugo, eu considero o seu
christianismo, embora philosophico, incomparavelmente mais puro do que o de Torquemada
e S. Domingos de Gusmão, cujo procedimento fanático estava em completo
antagonismo com os princípios sublimes, com as máximas sacrosantas proclamadas
no Evangelho. Victor Hugo, apesar do seu espiritualismo ardente e do seu
enthusiasmo pela moral evangélica, foi um dos escriptores mais eloquentes e
philosophicos que a França tem produzido. Se Guizot e Thierry na
França, Cantu na Itália, Maccaulay na Inglaterra, Herder e
Niebuhr na Allemanha, Prescott nos Estados-Unidos da America puderam
ser ao mesmo tempo historiadores de primeira ordem e espiritualistas christãos,
porque não poderia succeder o mesmo em
Portugal a Alexandre Herculano?
Condemnar este grande
homem pelo seu espiritualismo ardente e pelas suas crenças religiosas seria o
mesmo que condemnar a sua epocha e a escola romântica de que elle foi um dos
mais distinctos ornamentos, seria faltar á justiça e imparcialidade que deve
ter o verdadeiro critico».
In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública
realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900,
Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.
Cortesia de L. Tavares Cardoso & Irmão/JDACT