Fascinação do Ermo
«Uma apparente deserção
da cidade, em que vivera tantos annos, para se encerrar no retiro d'um
tranquillo casal rústico em Val-de-Lobos, a dissolução abrupta de
multiplicadas relações mundanas, litterarias e politicas, d'affectos, de commercio
intellectual e de velhos hábitos, serena e deliberadamente substituídos pelo isolamento
e rudeza do aldeão, no seu aspecto e modo de ser externo, pois, sem embargo, no
intimo não cessava nem podia cessar a superior distincção do espirito; esse
acto de estranha energia, que alguns julgaram orgulho e desprendimento irritado,
e outros tiveram por enigma indecifrável, foi o facto capital da vida de Alexandre Herculano. Os que na sua
existência anterior se tornaram notáveis e parecem designar marcos da jornada e
os que se seguiram a esse golpe de soberano arrojo, não parecem mais em ultima
conjuncção do que a experiência, primeiro, e depois a afirmação definitiva
d'uma individualidade, homogénea na substancia e invariavelmente idêntica no
movimento e nas tendências, lógica, seguida e firme, producto e revelação d'um
caracter inalterável.
A solidão será
eternamente o refugio dos fortes, d'aquelles que as tempestades do mundo não affeiçoaram
á sua obra de descrença, de mesquinhez, de destruição, d'aviltamento, de frouxidão
desalentada, de duvida resignada e de contentamento saciado nas comodidades d'uma
vulgarissima animalidade e na trivial vaidade dos instinctos primitivos.
Prophetas, santos e heroes, obscuros crentes e almas singelas, innumeraveis
espíritos d'eleição que o isolamento atráe, conquista e salva de tormentos, dia
a dia vão renovando essa perpetua pagina da historia da humanidade, que forma
alguma de civilisação pôde apagar ou corrigir. A nossa alma é progressiva, nunca
se repete, mas em todo o acto procura a realização d'um todo novo e mais bello,
mais próximo da revelação intima; e assim o vidente se vae isentando pouco a
pouco, no correr da existência, de tudo o que constrange, e perturba e offusca
a aspiração, para mais de perto se lhe unir e a contemplar. Pela própria necessidade
da missão a que o destino o votou, gradualmente se desprende das cadeias que lhe
tolhiam a liberdade d'expansão.
A critica, na
interpretação e auctorisado exame d'um extraordinário e grande mestre, cujo
saber e elevação foram dignos d'aquelle a que honrou, analysando-lhe a obra
portentosa e prestando culto ardente ao seu caracter, viu no solitário de Val-de-Lobos, como
em respeitoso carinho o cognominou, um suicida. Quando as feridas, as
perseguições, os ataques, os ultrages são profundos e agudos como os que
expulsaram da politica, e também das lettras, Alexandre Herculano, o stoico, repetindo a histórica phrase do
Africano, suicida-se. E’ então que vivamente nasce, pois só então o caracter
apparece com toda a sua pureza. Não o mata o scepticismo, mata-o o excesso
d'uma imperfeita doutrina. Não descrê, e é por cada vez mais acreditar em si
que foge a um mundo rebelde a ouvir a verdade. A morte não é pois um acto de
desespero, é um acto de fé. Só a differença dos tempos fez com que no suicidio
não entrasse o ferro, como entrou nos suicídios stoicos da antiguidade (Oliveira Martins, Portugal contemporâneo, Lisboa, 1881).
Porventura seria porém
mais justo ou, pelo menos, mais exacto considerar a attitude do ultimo período
da vida d'Alexandre Herculano, não
propriamente um suicídio, a morte voluntária d'uma parte da sua
individualidade, mas o perfeito remate, o termo ultimo da evolução natural do
seu espírito desde o começo promettida, contida nas primeiras confissões da sua
consciência. Com o stoico coincidia no mesmo peito o poeta; e os poetas não se
suicidam, a não ser por pressão de desordem physiologica grave ou no
desvairamento de uma surpreza. O poder de crear, sollicitando-lhes de continuo
a actividade de que carecem e são ávidos, salva-os da tentação do anniquilamento;
das visões que se esvaem e, perdendo-se, os deixam prostrados, reanimam-nos as que
sem cessar se geram e de novo os inflammam: e caminham, caminham infatigáveis, d'amor
em amor, tão depressa succumbidos como de súbito arrebatados por energias mysteriosas
e immortaes. Nem Camões, nem Dante,
nem Petrarca se suicidaram, embora a dôr a nenhum d'elles houvesse
poupado.
Jámais se penetrará
inteiramente, porque o génio sempre guarda para si certa essência transcendente
dos seus segredos, a natureza do impulso intimo que conduziu Herculano
ao ermitério de
Val-de-Lobos; se foi desgosto do mundo e protesto contra as suas vilanias, se
a seducção da paz dos campos e rendição aos seus encantos, se uma libertação
que as exigências do caracter austero ha muito reclamavam, se a doçura de
bênçãos que a terra prodigamente lhe offerecia e todo o seu ser lhe pedia. Sem
duvida, diversos sentimentos se conjugaram na mesma tendência, mas nas suas
palavras ha signaes claros de que a corrente d'affectos teria prevalecido sobre
rigores de condemnação; não será muito desvairada suspeita julgar que amou
tanto as arvores e as rosas dos seus estreitos canteiros como a Historia
de Portugal ou a promulgação de leis justas que engrandecessem a pátria.
Para elle, como para tantos outros da sua feição e estatura, até a tristeza e
mágoa se convertem em belleza, pela serenidade de que as revestem, pela
religiosa conformidade com que as acceitam e pelo objecto em que as transformam.
O que nos fracos redunda em estéreis
contracções torturadas de desespero, é nos fortes o ensejo de subirem a maior altura.
Eurico, que Alexandre Herculano modelou cedo e cedo
amou, era uma d'estas almas ricas de
sublime poesia, a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não
é para o mundo entendel-as. O
povo rude de Carteia não podia entender esta vida d'excepção, porque não
percebia que a intelligencia do poeta precisa de viver n'um mundo mais amplo do
que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites. Ensinado pelas largas horas de intima
agonia, esmagado o seu coração pela soberba dos homens, Eurico percebera, emfim, claramente que o christianismo se resume
em uma palavra, fraternidade. Sabia que o Evangelho é um protesto ditado por
Deus, para os séculos, contra as vãs distincções que a força e o orgulho
radicaram n'este mundo de lodo, d'oppressão e de sangue; sabia que a única
nobreza é a dos corações e entendimentos que buscam erguer-se para as alturas
do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.
Os virtuosos não
perceberiam os poemas em que o poeta lançava torrentes d'amargura, como, tranquilla
a consciência e repousada a vida, nm coração pode devorar-se a si próprio, e os
maus não criam em que o sacerdote, embebido unicamente em suas esperanças
crédulas, em suas cogitações d'além tumulo, curasse de males e crimes que roiam
a pátria».
In Jayme de Magalhães Lima, Alexandre Herculano, DD 5369 H4M3,
Typographia F. França Amado, (rua Ferreira Borges, 115) Coimbra, 1910.
Cortesia de Typographia França
Amado, 1910/JDACT