A Quinta da Regaleira e o Portugal Imaginal. Entrevista com José Manuel
Anes 2ª Parte. Da evidência da Identidade Imaginal Portuguesa à necessária
Re-criação da tradição
(…)
Paulo: E é interessante constatar que essa inquietação esotérica se cruza com
o Portugal Mítico.
José: É verdade. Há bocado
dizia que, de facto, se há algumas pessoas que têm vergonha de ser portuguesas,
a mim, felizmente, isso irrita-me um pouco. Eu vivi um ano e tal em Espanha,
estive com uma bolsa de pós-graduação nos anos setenta em Madrid, e via o
orgulho daquela gente em ser espanhola, com todos os defeitos de serem espanhóis.
Não são super-homens, mas têm orgulho da sua nacionalidade. Ora nós devemos ter
orgulho em ser portugueses. Isso terá de ser uma coisa natural e, felizmente,
vê-se o retorno às raízes, e às raízes da nossa identidade, da identidade etnográfica,
histórica, cultural. Tudo isso são componentes fundamentais que nós temos de
preservar. Isto não quer dizer que sejamos contra os outros, nem nacionalistas
estreitos. Pessoa falava desse paradoxo enorme que é o nacionalismo
cosmopolita e é, isso que nós devemos ser: atingirmos o universal através das
raízes particulares da nossa identidade. Porque, de facto, depois, todas as tradições
vão ter ao mesmo, mas vão através do nosso caminho.
Paulo: Mas isso corresponde ao diálogo simbólico. Cada cultura, se conhecer
os seus símbolos, quer dizer através do conhecimento das suas raízes, pode
estabelecer uma comunicação espiritual com os outros povos.
José: Exacto. E os nossos
símbolos, a nossa identidade, estão ainda vivos, apesar de tudo. Apesar, enfim,
de uma certa uniformização, apesar de algum mau gosto que nos é próprio, que
acrescenta coisas horrendas à nossa paisagem geográfica e cultural. Mas a
verdade é que ainda temos acesso às nossas raízes através das lendas, dos
contos, das festas populares, do património construído, do património
literário. Tudo isso está aí bem vivo, no sentido amplo da palavra. É interessante
verificar que há o regresso a essa dimensão, inclusive à dimensão folclórica
etnográfica, no sentido nobre da palavra. Há uma valorização das festas, de
locais, etc. Às vezes há uns acrescentos, um pouco pimbas, mas aí estão elas, acessíveis, e encontra-se já em
algumas autarquias e em alguns grupos de cidadãos o bom gosto e a cultura pelas
verdadeiras raízes da nossa identidade. E estão a valorizá-las.
Paulo: Eu tenho a sensação, quando leio o Leite
de Vasconcelos, o Abade Baçal,
etc., que nos anos talvez cinquenta, sessenta, tudo ficou parado. Eles fizeram
um trabalho, digamos, de base, e parece que tudo agora está à espera de um trabalho
hermenêutico, de um trabalho interpretativo. Tenho a ideia de que os jovens de
agora, no futuro, já não vão protagonizar o rito só por mimetismo, ou só
por fé. Precisam de compreender, e tenho a impressão de que ainda falta transpor
esses novos conhecimentos antropológicos para as nossas tradições. Esse
trabalho está por realizar…
José: Fernando Pessoa abriu
portas. Mais tarde, também o fizeram Agostinho da Silva, com o Culto
do Espírito Santo, António Quadros com os estudos sobre
o Sebastianismo e o Quinto Império, Lima de Freitas, etc.
Mas, com efeito, ainda há muito que fazer nessa dimensão. Muito, muito...
Paulo: Tenho a ideia de que, do mesmo modo que há grupos ecológicos, talvez,
no futuro, tenha de haver grupos de defesa dos valores antropológicos. Não é só
necessária a defesa da pedra, das árvores, dos rios, ou dos animais, mas também
a defesa da tradição e daqueles valores tradicionais como a vivência do Tempo
Mítico e do Espaço Sagrado. Valores que não se perderam ao fim de dois mil
anos, mas que agora a sociedade de consumo e a absorção mediática da
vida os está a colocar em nítido perigo de extinção...
José: De qualquer maneira, a
melhor defesa não é, digamos, uma preservação de tipo policial. A melhor defesa
é torná-los vivos, fazer a recriação. A recriação em cada época é a actulização
desses valores perenes e desse património. Disse há pouco que os jovens não
querem fazer o ritual tal e qual, eles querem sempre recriar e acrescentar
alguma coisa. Isso, de facto, essa reactualização, estou de acordo que falta
fazer.
Paulo: Falta sentir e compreender os símbolos...
José: Mas estão aí as
pistas. Os grandes focos destas nossas correntes já nos deram pistas, lançaram-nos
bons desafios. Infelizmente, António Quadros não completou o terceiro
volume da sua trilogia. O mestre Lima de Freitas também tinha ainda
muito por realizar e escrever...
Paulo: Vou exemplificar um caso muito simples: nós, por exemplo, na Páscoa
temos os folares. Ora já no Antigo Egipto, quando se oferecia um ovo a alguém,
significava, simbolicamente, desejar o renascimento espiritual a essa pessoa.
Portanto, quer dizer, havendo o folar, falta a forma mental, falta criar essa
nova atitude de núpcias entre o sentimento e o significado simbólico, incluir o
tal terceiro incluído, passe a redundância, nas nossas tradições...
José: Completamente. O que
se passa talvez em Portugal... não sou um especialista de filosofia, nem da
história das ideias, seja em Portugal ou no estrangeiro, mas dá-me a ideia de
que em Portugal houve sempre dois caminhos antagónicos e que não houve o
terceiro, o tal mediador. Houve sempre o caminho do positivismo, sempre, enfim,
desde que ele existiu, o positivismo; depois o caminho de uma mística
completamente beata, e faltou-nos o terceiro caminho».
In Paulo Loução, A Alma Secreta de Portugal, Ésquilo Edições &
Multimédia, 2004, ISBN 972-8605-15-3.
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