«(…) A maior parte dos pensadores da Antiguidade considerava que as mulheres
não estavam capacitadas para governar, e os exemplos que davam tinham como
finalidade demonstrar que os seus povos tinham atravessado graves atribulações
por causa delas. Desde a rainha Cleópatra às imperatrizes romanas, todas se
tinham deixado vencer pelas paixões. Os seus principais defeitos, segundo
aqueles, tinham sido quase sempre os mesmos, a soberba e a promiscuidade sexual.
Os inícios do cristianismo, graças à sua especial valorização da maternidade e
do amor conjugal, foram bastante lisonjeiros para as mulheres. Nos primeiros
séculos, algumas delas chegaram a ser diaconisas,
o que lhes permitiu exercer uma certa influência na sociedade. As abastadas
patrícias romanas tinham sido as primeiras a contribuir com os seus donativos
para que a Igreja Católica se convertesse em proprietária de extensos
latifúndios, pelo que esta instituição se mostrou agradecida, outorgando-lhes
uma relativa quota de poder dentro dela.
Essa alta consideração começou a diminuir em finais do Império Romano,
quando começou a difundir-se uma interpretação enviesada dos primeiros
capítulos do Antigo Testamento, fruto de ideias anteriores ao cristianismo
contrárias à natureza racional feminina. Uma vez que o pecado tinha sobrevindo
à espécie humana por culpa de Eva, todas as do seu sexo estavam sob suspeita.
Devia-se evitar, pois, que a inata tendência feminina para a luxúria
danificasse a parte racional outorgada por Deus à humanidade, simbolizada no alento
que o Criador deu a Adão no momento de converter o barro em carne. O facto de a
primeira mulher surgir da sua costela era a causa da sua menor capacidade de
raciocínio, atributo preponderante do género masculino.
Essa desconfiança afectava todas as mulheres em geral, incluindo as
nascidas no seio dos altos estratos. Por uma original mistura de factores
étnicos, religiosos, políticos e jurídicos, que se deram na Península Ibérica
durante a Idade Média, duas mulheres desafiaram essas convenções no início do século
XII, alcançando importantes quotas de poder: as rainhas Urraca de Leão e
Castela e Teresa de Portugal, filhas do rei Afonso VI de Leão e Castela
(1040-1109).
Estas, irmãs separadas,
não se limitariam a ser soberanas consortes ou transmissoras de direitos,
únicos papéis representados pelas anteriores mulheres que se tinham sentado nos
tronos ibéricos, mas deteriam o poder com todas as prerrogativas, próprias até
esse momento só dos homens. Mas se de Urraca se pode dizer que estava
predestinada a herdar uma coroa, enquanto filha primogénita e legítima de um
rei que teve só um filho varão que morreu na adolescência, no caso da rainha
Teresa de Portugal nada no seu nascimento parecia chamá-la a tão alto
destino, começando pela incerteza sobre a data, que segundo diferentes historiadores
terra sido entre 1081 e 1091 Dezenas de infantas vindas ao mundo antes dela numa
posição muito mais vantajosa tinham acabado por ser apenas mais um nome nos
documentos da chancelaria régia.
Foi a segunda filha de uma nobre a quem o rei não pôde tomar por esposa
por já ter uma. Casaram-na durante a infância com um príncipe sem herança,
sexto filho de uma linhagem estrangeira. Ficou viúva antes de fazer vinte e cinco
anos, com três filhos pequenos. E uma parte dos barões portucalenses tornou-a
objecto da sua desconfiança. pois viam-na como um cavalo de Tróia dos
interesses galegos. Tudo isto
no meio de constantes guerras civis entre potentados que tentavam utilizá-la
para os seus próprios fins. Pois bem, Teresa de Portugal sairia
airosamente de quase todos esses desafios.
Contudo, não parece ter recebido em troca o merecido reconhecimento da
posteridade. Certamente não só devido à falta de fontes onde estudá-la, mas
também à manipulação de alguns factos históricos referentes à sua vida privada,
como consequência da sua relação sentimental com o conde Fernando Pérez de
Trava, que já estava casado, e de quem teria, pelo menos, uma filha. Até à
chegada dos Áustrias espanhóis ao trono português, a sua figura não tinha
chamado demasiado a atenção dos historiadores. Posteriormente, quando o matrimónio
da infanta Bárbara de Bragança (1711-1758) com o príncipe das Astúrias,
futuro Fernando VI de Espanha, encontrou uma forte oposição num sector da corte
espanhola, Teresa de Portugal foi outra vez posta em causa.
Académicos de ambos os lados da raia
discutiram então invocando o seu nome, não para analisar a sua acção de
governo, com o objectivo de separar a verdade da calúnia, a política da
propaganda, mas antes para tratar de elucidar se a primeira mulher que regeu
Portugal era filha ilegítima de Afonso VI, se tinha cometido incesto com Bermudo
Pérez, marido da filha, a infanta Urraca Henriques, e se tinha
vivido em adultério, e talvez casado com o bígamo conde Fernando Pérez,
irmão do genro. Quantos pecados para uma só rainha!»
In Marsilio Cassotti, D. Teresa, A Primeira Rainha de Portugal,
Prefácio de G. Oliveira Martins, Attilio Locatelli, A Esfera dos Livros, 2008,
ISBN 978-989-626-119-1.
Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT