Divergência e Diálogo
«(…) A esmagadora maioria dos habitantes eram colonos. Certamente. Mas
havia uma diferença social considerável entre o colono sediado e integrado na
estrutura do concelho e o colono disperso por casais habitados do interior
feudal. Não só ao nível da consciência social mas também pela possibilidade
maior de reter nas suas mãos os excedentes de produção que levavam ao mercado.
Depois, essa minoria, rica dos
concelhos que não é menor em número do que a minoria dos senhores feudais desfrutavam
já de um poder económico e político-militar determinante. Basta recordar que
desde Navas de Tolosa, para lâ da gesta cavaleiresca da Batalha do Salado,
o exército do rei de Portugal era predominantemente constituído por estas
tropas vilãs que, em vez de receberem soldo para defenderem, pagavam à sua
custa o cavalo e as armas e o sustento, deixando o agro e os bens abandonados.
A revolução popular e burguesa,
defendida por Armando Castro, surge quase contra o processo no cerrado
domínio feudal com que prende os homens do nosso século XIV. Não existia necessidade de substituição do
sistema económico-social feudal. Nem necessidade nem força para substituir
o modo de produção feudal. Só que outro modo de produção abria caminho.
Chamem-lhe os nomes que quiserem. Ele estava vivo e com força suficiente para
abrir um largo espaço. Lembro as palavras com que Armando Castro termina
o volume XI da sua A Evolução Económica de Portugal:
- a sua vitória [a da burguesia] não foi um ponto de fractura da História de Portugal, mas conclui-se igualmente que foi aquilo que as determinantes socioeconómicas permitiram que fosse. Tal é a grandeza imorredoura e inexcedível das remotas gerações destes nossos avós.
Não se percebe muito bem esta retórica de grandeza imorredoura e inexcedível numa revolução que não foi
fractura, numa revolução presa nas determinantes socioeconómicas feudais, numa
revolução que, como pretende provar, se saldou por um reforço da aristocracia
senhorial. Na formação económico-social do Portugal do século XIV
desenvolvia-se ou não um novo modo de produção, cercado pelas estruturas senhoriais, imbricado no próprio modo de
produção feudal? Havia ou não outros
parâmetros de existência colectiva? Na formação económica-social de
Trezentos vigorava apenas o modo de produção feudal ou coexistia com um novo modo
de produção protocapitalista e até com sobrevivências
esclavagistas e ainda mais acentuadamente práticas comunitárias?
Modo de produção feudal, modo de produção capitalista, classes, ordens...
Não estamos perante um aparelho conceptual datado
e testado para as sociedades capitalistas europeias do século XIX, como
objectam alguns? Não é este um problema relacionado com a necessidade de nos descartarmos da nossa
contemporaneidade? Não podemos descartar-nos dela. Podemos sair ficando, se identificarmos nas
palavras e conceitos os conteúdos de hoje, incluindo os mais recentes, os que acabam
agora mesmo de se definir, e se identificarmos conjuntamente as palavras e os
conteúdos dos conceitos de ontem, daquele ontem que pretendemos caracterizar e
compreender. Nesta dupla tentativa procuramos há pouco entender o concelho em
Portugal na época de Trezentos.
Mas na sua marcha criativa, os homens que escreveram/pensaram a História
inventaram conceitos-ferramenta que procuram abarcar todo o desenvolvimento do
processo histórico. Marx e Engels desempenharam um papel de
primeiro plano mas não estão sós nem foram eles quem inventou, como eles
próprios afirmam, o conceito da luta de classes... Não constitui problema o
facto de algumas leis e conceitos que intentam compreender todo o processo histórico
terem sido inventadas no século XIX. Problema seria se se revelassem ineficazes
e caducos ou se pretendêssemos fechar a sua abertura a novas determinações. Por
outro lado, recusar conceitos-ferramenta que abarquem o todo equivaleria a
recusar a História como ciência, equivaleria a recusar a possibilidade de compreender
o passado.
A verdade, e no caso a verdade histórica, exige uma abordagem
totalizante. O pensamento, a câmara fotográfica que vive connosco, pensa
analisando, particularizando, mas a compreensão só se atingirá integrando os
elementos no todo. Também aqui subsiste uma confusão: a que confunde visão totalizante da história e publicação total dos
documentos. Em História Moderna e Contemporânea, nunca uma visão totalizante
seria possível porque o número dos documentos é infinito. Por outro lado,
épocas há em que, embora possam ser publicados todos os documentos existentes,
subsistirão sempre larguíssimas lacunas no campo da informação. Uma visão
totalizante da História é aquela que impede, por exemplo, isolar na análise as
ideias de uma época e pensá-las de costas voltadas contra a infra-estrutura
económica-social e vice-versa.
Houve um novo modo de produção. Caracterizámo-lo em diferentes
passagens deste livro e ainda há momentos no corpo deste texto: agricultura voltada predominantemente
para o mercado e especializada, agricultura assente, não na medida do trabalho
familiar mas na medida do trabalho assalariado permanente e sazonal.
Esta agricultura extensiva e intensiva exige terra e capitais para a compra do
gado e instrumentos de trabalho, para a compra de rebanhos, para o pagamento em
dinheiro e géneros dos salários e para outras despesas com o cultivo. Esses
capitais corriam nas mãos dos homens-bons e sobretudo dos cidadãos, os tais honrados pela sua fazenda. Também em
alguns ofícios se assistira à desintegração em mestres-donos de ofício e
companheiros-assalariados e aprendizes a bem fazer.
Quanto à terra, não faltava terra para agricultar pelo novo modo de
produção. Mesmo que todo o solo pagasse renda feudal da terra, o novo modo de
produção podia existir e desenvolver-se». In António Borges Coelho, A Revolução de
1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.
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