NOTA: De acordo com o original
«(…) De mais, o portuguez
esclarecido trazia já na mente a traça do grande commettimento que devia
illustrar o seu nome, e vinculal-o perennemente nos fastos das nações. Se lhe
negavam três cruzados por anno, para os quaes tinha posto a juros a sua espada
na Índia, e o seu sangue em Azamor, o que não havia de ser, quando elle pedisse
a el-rei que lhe desse dois navios para ir correr os mares e descobrir novos dominios á coroa de Portugal? Como
havia de fiar a sua futura gloria de quem já lhe punha abertamente em duvida a passada fama de suas façanhas?
Claro estava que não havia de ser mais bem succedido na petição de heroe do que
fora então na de requerente e de soldado.
Eis aqui como Gaspar
Corrêa, na simplicidade do seu estylo e na incorrecção habitual da sua
linguagem, narra a petição de Magalhães, e o mau despacho d'el-rei: ...; o qual Fernão de Magalhães indo ao reino, allegando a el-rei seus serviços,
e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em sua moradia por mez,
o que lhe el-rei denegou, por lhe não cair em graça, ou porque assim estava
permittido que havia de ser; Fernão de Magalhães d'isto aggravado, porque o
muito pediu a el-rei e elle o não quiz fazer, lhe pediu licença para ir viver com
quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com elle. El-rei lhe
disse que fizesse o que quizesse; pelo que lhe quiz beijar a mão, que lhe
el-rei não quiz dar. Fernão de Magalhães desnaturalisou-se
de portuguez, e foi-se a Castella pedir que o inscrevessem ali como cidadão. Fez mal? Fez bem?
Castella era n'aquelle
tempo, como antes, como depois, a inimiga de Portugal, ainda quando a paz
dissimulava nas apparencias da concórdia a hereditária hostilidade das duas
coroas peninsulares, que aspiravam á exclusiva supremacia. Castella era a émula
de Portugal nas conquistas transatlânticas. Castella era na Europa a nação
perpetuamente cobiçosa da estreita orla Occidental que as lanças portuguezas haviam
sempre defendido contra os partidários da unidade hispânica; era nos mares o
estado que comnosco litigava o império e poderio. Renegar a pátria e ir-se a Castella
era tão feia acção como na antiguidade o acolher-se um atheniense ou um
espartano á corte dos reis da Pérsia, depois de haver contra elles pelejado em
Marathona ou em Plateia.
Desnaturalisar-se de
portuguez e ir offerecer a sua espada aos reis catholicos era porventura maior
sacrilégio, então, do que renegar a pureza da verdadeira fé, e transviar-se nos
erros de Luthero e de Calvino. No portuguez não foi para ser louvada a
represália. No homem que havia de pertencer á civilisação e á humanidade mais
do que aos estreitos limites da sua pátria, podemos relevar o impulso da
offendida dignidade e do amor próprio justificado.
Para ser portuguez havia
de ver menosprezada a sua gloria e mal galardoados os seus feitos. Para não
faltar á religião da pátria havia de faltar á religião de honra; havia de
devorar as affrontas em silencio, e reprimir no peito os rebates da sua varonil
indignação. Para ser portuguez havia de votar-se talvez para sempre á
obscuridade, e ver frustrado o seu empenho de conquistar para si um nome
illustre, a par de quantos houve mais distinctos na historia das modernas
navegações.
Com a fidelidade de Fernão
de Magalhães lucrava a pátria e o rei um natural e um vassallo. Mas
perdia o drama glorioso dos descobrimentos transatlânticos um eminente
personagem, Portugal um nome venerando, a moderna civilisação um d'estes
fervorosos operários que da espada e do navio tem feito os mais poderosos
instrumentos do progresso. Fernão de Magalhães pagou-nos generosamente
o desamor e affronta de renegar-nos. Servia a Castella quando circumnavegava o
globo. Mas o nome de Magalhães ficou sempre portuguez, e
a gloria das suas navegações ha de ser
perpetuamente gloria
também de Portugal». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães.
Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de
Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense,
Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.
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Portuguesa/JDACT