«Partindo de um estudo sobre os jovens que ingressam na advocacia
portuguesa, este artigo retoma uma temática bastante arredada da sociologia
contemporânea, a ético-deontologia dos grupos profissionais. Sustenta-se que os
argumentos ético-deontológicos conduzem os jovens que acedem à profissão
através do protótipo liberal a
desenvolverem aspirações compatíveis com o exercício
liberal, a avaliarem positivamente a sua situação profissional e a
adquirirem capital simbólico, num momento marcado pela ascensão dos jovens
colaboradores em grandes sociedades de advogados. O argumentário
ético-deontológico faz ainda com que estes últimos, distantes do protótipo
liberal, não adquiram uma supremacia simbólica absoluta no interior da
profissão.
Reequacionando a
problemática ético-deontológica
Desde a década de 1960, temos vindo a assistir, no contexto da
sociologia das profissões, à crítica e progressiva perda de hegemonia do
paradigma funcionalista, em particular da corrente parsoniana, processo comum a
vários outros domínios da investigação sociológica. Nenhuma das dimensões de
análise dos grupos profissionais ficou incólume a esse movimento reativo,
nomeadamente aquela sobre a qual nos iremos debruçar, os aspetos
ético-deontológicos das profissões. No quadro do estrutural-funcionalismo clássico, particularmente na
obra de Parsons, mas também em textos de Wilensky, Barber ou Goode, os aspectos
ético-deontológicos correspondiam a uma das características omnipresentes em
qualquer definição ideal-típica de profissão,
contribuindo para as distinguir das “meras ocupações”. Os elementos éticos
constituíam, além disso, os pilares da exigente formação moral a que todos os
profissionais seriam submetidos. A sua interiorização sob a forma de normas
impessoais seria, por sua vez, responsável, a par dos códigos normativos, pelo
facto de os profissionais agirem segundo motivações altruísticas.
Em termos gerais, é possível considerar que
nas abordagens posteriores, contrárias ao funcionalismo, as dimensões
ético-deontológicas deixam de ser consideradas algo de intrinsecamente
constitutivo dos grupos profissionais e dos processos de socialização daqueles
que os integram, para passarem a ser equacionadas como um conjunto de elementos
reivindicados pelos profissionais no sentido de legitimarem a sua situação
privilegiada na divisão social do trabalho. Se é já possível reconhecer este
tipo de pressupostos no trabalho de refocalização,
sociológica das profissões conduzido pelo interacionismo simbólico, é, no
entanto, a partir de um conjunto de obras de inspiração weberiana e marxista
que se contesta, assumidamente, o modo como as perspectivas funcionalistas
haviam conceptualizado esses aspectos. Autores como Roth, Chapoulie ou Gyarmati,
entendem que a reivindicação da posse de putativas qualidades e atributos
éticos pelos grupos profissionais se encontra inextricavelmente ligada à
ideologia e aos interesses dos seus membros, e é portanto sob essa ótica que a questão da deontologia deve ser
sociologicamente analisada. Este modo de ver tem particular impacto na obra de
Freidson, que associa a ética profissional ao poder profissional, particularmente às formas de legitimação que
lhe subjazem, e, apesar das suas diferenças, nos escritos de Larson. Como é
sabido, Magali Larson proclama que a reivindicação de pretensos atributos
éticos, como o altruísmo, constitui, a par da monopolização de determinadas
competências intelectuais, um dos elementos chave na defesa da ideologia do profissionalismo, ideologia
que consiste num dos dispositivos estratégicos centrais adoptados pelos grupos
profissionais no sentido de criarem mercados
de trabalho fechados, de desenvolverem projectos
de mobilidade social e de garantirem a sua preservação diante de ameaças
externas.
A
crítica do sentido axiológico da ético-deontologia presente no funcionalismo
parsoniano desenvolvida por estas perspectivas faz, em nosso entender, pleno
sentido. A perspectiva parsoniana acabava por representar (mesmo
involuntariamente) uma espécie de contributo sociológico para o engrandecimento
das profissões e para a legitimação do poder
profissional. No entanto, e não obstante os seus méritos, as abordagens pós-funcionalistas não deixam também de
comportar alguns riscos e limitações. Ao reduzirem as dimensões
ético-deontológicas a um papel de meros artefactos ideológicos mobilizados
pelos grupos profissionais diante da sociedade em geral, ou de grupos profissionais
concorrentes, elas tenderam a menosprezar alguns dos efeitos que as dimensões
ético-deontológicas podem exercer sobre a instituição e o funcionamento dos mundos profissionais e,
concomitantemente, a sua análise por parte das ciências sociais». In João Sedas Nunes e Miguel Chaves,
Deontologia e capitalização simbólica na advocacia portuguesa contemporânea, Análise Social, 202, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa, 2012.
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