segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Os Ciganos de Portugal com um Estudo sobre o Calão. Adolpho Coelho. «’Calão, gira, gíria ou geringonça’ são os termos com que em português se designa o vocabulário especial dos criminosos de profissão, fadistas, contrabandistas, garotos e outra gente de hábitos duvidosos…»

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Considerações Gerais
«(…) Os 484 termos ou formas do rumanho reunidos em o nosso Vocabulário classificam-se, em quanto á sua origem próxima, do modo seguinte:
  • 353 encontram-se também no gitano, em geral sem diferença considerável de sentido ou de forma; 
  • 3 não se encontram nos vocabulários gitanos que temos á mão, mas occorrem noutros dialectos tsiganos (bato, bibiora, tarní); 
  • 68 são derivados de palavras hispanholas ou portuguesas; 
  • 8 são palavras portuguesas ou hispanholas de significação alterada ou especialisada (andantes, aparador, arboleo, bicha, churon (?), frumachos (?), guenassuertes, tarrosa). Vid. também apatuscos, patuque e patusco; 
  • 1 (culebra) provém da germania; 
  • 1 (ancia) provém da germania ou do calão; 
  • 1 é uma forma portuguesa muito alterada foneticamente, mulla. 
  • 47 são de origem para mim incerta ou desconhecida. Talvez que nova investigação do gitano e dos outros dialectos tsiganos prove a origem tsigana de alguns desses termos, parte dos quaes tem aspecto que a faz suspeitar.
O calão e a língua dos ciganos
Tem-se confundido muitas vezes a linguagem dos tsiganos em geral com o calão. Sabemos já o que é a primeira; vejamos o que é o segundo e se entre uma e outro existem quaesquer relações. Calão, gira, gíria ou geringonça são os termos com que em português se designa o vocabulário especial dos criminosos de profissão, fadistas, contrabandistas, garotos e outra gente de hábitos duvidosos, que por aquelle meio buscam não ser entendidos da sociedade geral. Por extensão dão-se ainda aquelles mesmos nomes á terminologia especial de uma classe, de uma profissão licita, e sobretudo ao conjuncto de termos particulares, muitas vezes de caracter cómico, que usam certos grupos sociaes, como os estudantes, os actores, os pintores, os pedreiros, os typographos, os soldados.
O calão ou giria não é um dialecto: tem palavras alteradas phoneticamente, sem duvida, mas por processos geralmente distinctos dos que caracterisam a alteração phonetica dialectal; não tem em regra nem morphologia nem syntaxe que o separem da lingua geral em que por assim dizer se encrava. Uma outra differença fundamental separa demais o calão dos dialectos; naquelle as transformações próprias são geralmente queridas, intencionaes; nestes as transformações são geralmente espontâneas, inintencionaes. Ha duas espécies de giria: numa as alterações são puramente phoneticas só a matéria da palavra se modifica; noutras accrescem ás transformações dessa espécie, que então se tornam menos numerosas, modificações morphologicas e semanticas (de significação). Da primeira espécie é uma giria usada entre nós pelas creanças nos collegios, que consiste em accrescentar a cada syllaba de uma palavra uma outra constituída por um g ou p seguido da vogal daquella syllaba; assim tu queres ir a casa torna-se tu-pu qué-pé-rés-pés ir-pir a-pa cápá-za-pa.
Os caixeiros da Baixa, em Lisboa, usavam e usam ainda provavelmente uma giria do mesmo género, mas mais perfeita, que consistia numa inversão de consoantes: não quero ir passear hoje tornava-se ãon' reco ri sapear johe. Essa giria era fallada e entendida com muita facilidade pelos iniciados. Os principaes processos das girias do segundo género serão estudados depois. Essas girias podem ser denominadas de vocabulário particular.
Tendo definido o que deve entender-se por calão ou giria, examinemos agora a origem d'estas palavras. Os hispanhoes denominam as mesmas linguagens artificiaes com o termo germanía, e tinham o synonymo antiquado gerigonza, giringonza, xeringonça; os francezes com os termos jargon e argot; os italianos com os termos gergo e lingua furbesca; os inglezes com o termo cant; os allemães com o termo Rothwelsh (á letra, italiano vermelho), os hollandezes com a expressão bargoensch ou dieventael (á letra, lingua de ladrões), os russos com o vocábulo afinskoe, os tcheques com a palavra hantyrka.
O termo calão como synonymo de giria parece não ter correspondente phonetico fora de Portugal; a sua etymologia é todavia muito transparente: calão, propriamente, quer dizer cigano, lingua de cigano; é um termo com que os ciganos do nosso país ainda hoje se designam. A palavra gira, giria liga-se, ao que parece, a gerigonça, giringonça, que como vimos se encontrava também em hispanhol, ao francez jargon, provençal gergonz, e ao italiano gergo, gergone. A etymologia desses termos oferece bastantes dificuldades». In Adolpho Coelho, Os Ciganos de Portugal, Com um Estudo sobre o Calão, Sociedade de Geografia de Lisboa, Congresso Internacional dos Orientalistas, SSGL, Imprensa Nacional, Lisboa, 1892.

Cortesia de IN/JDACT