Heranças. Animais,
imagens e símbolos nos poetas greco-latinos
«(…) Quanto a heróis em situação de inferioridade, compare-se a imagem
dos Troianos com a do valoroso Sarpédon, morto às mãos de Pátroclo. No primeiro
caso, para incitar os Aqueus, Posídon lembra que os Troianos já se não mostram
tão vulneráveis como antes, quando pareciam
tímidas corças que, no bosque, costumavam ser presas de chacais, panteras e
lobos, e fugiam, sem forças nem vontade de lutar. Sarpédon, porque lutou
valentemente, tem o valor de um touro capaz de enfrentar um leão, ou seja,
Pátroclo, mas acaba derrotado: como um
leão mata bravo touro fulvo, atirando-se aos bois de andar balanceante, e ele
morre, gemendo, nas mandíbulas do leão.
Não se pense, porém, que são apenas mamíferos as espécies utilizadas
por Homero nos seus símiles: aves, répteis, peixes e outros animais marinhos ou
insectos também fazem parte do imaginário do poeta. Das aves, se
indiferenciadas, aproveita sobretudo a fragilidade perante ave mais possante;
se especificadas, a superioridade; em ambos os casos, o ímpeto com que levantam
voo e a velocidade com que se movem. Dos restantes animais recorre com
frequência aos répteis, nomeadamente à perfídia da serpente; aos peixes,
sobretudo à sua fragilidade perante grandes animais marinhos; a insectos,
principalmente às grandes massas dos enxames, ou ao seu desespero e desorientação,
se os enxotam. Apenas quatro outras citações, paraficarmos com uma ideia mais completa
do processo. Menelau procura Antíloco, seu companheiro, filho de Nestor, como águia que se diz ser das aves a que
mais agudamente olha para o céu, à qual, do alto, não consegue escapar-se a
tímida lebre de pés rápidos, embora escondida no mato frondoso. Precipita-se
sobre ela e, agarrando-a, rapidamente lhe tira a vida.
Esta imagem do marido de Helena é complexa, porque a águia conjuga a representação
da sua atitude perscrutadora com a marca da superioridade de um rei. Neste
caso, o herói procurava um amigo. À espreita de um inimigo, o símile pode ser
uma serpente, mesmo com um herói tão simpático como Heitor. Esperava Aquiles como serpente na sua lura na montanha espera
um homem, farta de veneno e cheia de amarga bílis; lança um terrível olhar e
contorce-se diante da toca. Os guerreiros que se dirigem à assembleia são
vistos de forma graciosa: saem da pedra
côncava como enxames compactos de abelhas sempre saindo novas, voando em cacho
para flores primaveris. Vejamos ainda como o épico descreve perseguidores e
vítimas, por meio de um símile aquático: como
peixes que fogem diante de monstruoso golfinho e enchem os fundos do abrigo que
lhes dá um bom porto, estão cheios de medo quem for apanhado, é comido.
Note-se que em Homero o golfinho ainda não adquiriu o sentido de amigo
do homem, ligada ao mito dos piratas tirrenos, tão minuciosamente descrito por
Ovídio nas suas Metamorfoses. Na Odisseia
há símiles idênticos, mas a principal simbologia relaciona-se com os seres
fabulosos que materializam os terrores e as dificuldades enfrentadas pelos
heróis, o que está fora do âmbito desta apresentação. Para não entrarmos em
repetições, recordemos apenas duas referências a Ulisses. Na linha da bravura
do leão, que, por vezes, apresenta uma conotação de crueldade, mas variando uma
vez mais o seu uso, o poeta imagina o herói faminto como leão dos montes, confiante na sua força, que, batido pela chuva e
pelo vento, de olhos em brasa, se atira aos bois, ovelhas e veados selvagens: é
o estômago que o impele.
Mesmo em situação desesperada, Ulisses recebe um símile digno do
seu valor. Noutros casos, o Poeta salienta diferentes facetas do carácter e
sentimentos do senhor de Ítaca. Indignado com as serviçais do palácio,
mostra todo o seu desagrado, deixa transparecer uma raiva incontida e denota
até um certo mau génio: o seu coração
ladrava, como cadela à volta dos tenros filhotes que ladra aos desconhecidos,
esperando a luta. Não estranharemos, obviamente, ver ainda o multifacetado
herói retratado por símiles que realçam a sua astúcia, evidentemente por meio
da raposa, a sua determinação pelo
confronto com a força dos tentáculos de um polvo,
etc. Da exemplificação apresentada supomos já ser possível concluir que alguns
dos animais utilizados em símiles acabam por adquirir força simbólica. Será o
caso da bravura do leão, da sanha do lobo, da teimosia do burro. Curiosamente,
também se encontra em Homero o primeiro o uso de cão como termo injurioso, por exemplo dirigido aos pretendentes de Penélope
(Odisseia). Já a fidelidade canina
não aparece pela primeira vez em nenhum símile e sim num dos mais comoventes
episódios da Odisseia: o do cão de
Ulisses. Diz Homero, ao descrever o regresso a casa do herói, que ninguém
reconhece: um cão, deitado, ergueu a
cabeça e as orelhas. Era Argo, o cão que o valoroso Ulisses treinara antes de
partir para a sagrada Íhon, sem dele ter aproveitado. Outrora os jovens tinham-no
levado à caça do veado, da lebre e das cabras monteses. Agora, abandonado, na
ausência do dono, jazia ali, estendido sobre um monte de esterco de mulas e
bois, donde os escravos vinham buscar com que adubar a grande quinta. Aí jazia
Argo, coberto de parasitas. Reconheceu o homem que chegava, Ulisses; e, mexendo
a cauda, arrebitou as orelhas. Não teve forças para se chegar ao dono",
etc., etc..»
In Maria Isabel Gonçalves, Animais, Imagens e Símbolos nos Poetas
Greco-Latinos, Animalia, Presença e Representações, coordenação de Miguel
Alarcão e Outros, Lisboa, Edições Colibri, 2002, ISBN 972-772-353-5.
Cortesia de Colibri/JDACT