terça-feira, 10 de setembro de 2013

Animalia. Presença e Representações. Heranças. Maria Isabel Gonçalves. «Mesmo em situação desesperada, Ulisses recebe um símile digno do seu valor. Noutros casos, o Poeta salienta diferentes facetas do carácter e sentimentos do senhor de Ítaca. Indignado com as serviçais do palácio…»

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Heranças. Animais, imagens e símbolos nos poetas greco-latinos
«(…) Quanto a heróis em situação de inferioridade, compare-se a imagem dos Troianos com a do valoroso Sarpédon, morto às mãos de Pátroclo. No primeiro caso, para incitar os Aqueus, Posídon lembra que os Troianos já se não mostram tão vulneráveis como antes, quando pareciam tímidas corças que, no bosque, costumavam ser presas de chacais, panteras e lobos, e fugiam, sem forças nem vontade de lutar. Sarpédon, porque lutou valentemente, tem o valor de um touro capaz de enfrentar um leão, ou seja, Pátroclo, mas acaba derrotado: como um leão mata bravo touro fulvo, atirando-se aos bois de andar balanceante, e ele morre, gemendo, nas mandíbulas do leão.
Não se pense, porém, que são apenas mamíferos as espécies utilizadas por Homero nos seus símiles: aves, répteis, peixes e outros animais marinhos ou insectos também fazem parte do imaginário do poeta. Das aves, se indiferenciadas, aproveita sobretudo a fragilidade perante ave mais possante; se especificadas, a superioridade; em ambos os casos, o ímpeto com que levantam voo e a velocidade com que se movem. Dos restantes animais recorre com frequência aos répteis, nomeadamente à perfídia da serpente; aos peixes, sobretudo à sua fragilidade perante grandes animais marinhos; a insectos, principalmente às grandes massas dos enxames, ou ao seu desespero e desorientação, se os enxotam. Apenas quatro outras citações, paraficarmos com uma ideia mais completa do processo. Menelau procura Antíloco, seu companheiro, filho de Nestor, como águia que se diz ser das aves a que mais agudamente olha para o céu, à qual, do alto, não consegue escapar-se a tímida lebre de pés rápidos, embora escondida no mato frondoso. Precipita-se sobre ela e, agarrando-a, rapidamente lhe tira a vida.

Esta imagem do marido de Helena é complexa, porque a águia conjuga a representação da sua atitude perscrutadora com a marca da superioridade de um rei. Neste caso, o herói procurava um amigo. À espreita de um inimigo, o símile pode ser uma serpente, mesmo com um herói tão simpático como Heitor. Esperava Aquiles como serpente na sua lura na montanha espera um homem, farta de veneno e cheia de amarga bílis; lança um terrível olhar e contorce-se diante da toca. Os guerreiros que se dirigem à assembleia são vistos de forma graciosa: saem da pedra côncava como enxames compactos de abelhas sempre saindo novas, voando em cacho para flores primaveris. Vejamos ainda como o épico descreve perseguidores e vítimas, por meio de um símile aquático: como peixes que fogem diante de monstruoso golfinho e enchem os fundos do abrigo que lhes dá um bom porto, estão cheios de medo quem for apanhado, é comido.
Note-se que em Homero o golfinho ainda não adquiriu o sentido de amigo do homem, ligada ao mito dos piratas tirrenos, tão minuciosamente descrito por Ovídio nas suas Metamorfoses. Na Odisseia há símiles idênticos, mas a principal simbologia relaciona-se com os seres fabulosos que materializam os terrores e as dificuldades enfrentadas pelos heróis, o que está fora do âmbito desta apresentação. Para não entrarmos em repetições, recordemos apenas duas referências a Ulisses. Na linha da bravura do leão, que, por vezes, apresenta uma conotação de crueldade, mas variando uma vez mais o seu uso, o poeta imagina o herói faminto como leão dos montes, confiante na sua força, que, batido pela chuva e pelo vento, de olhos em brasa, se atira aos bois, ovelhas e veados selvagens: é o estômago que o impele.
Mesmo em situação desesperada, Ulisses recebe um símile digno do seu valor. Noutros casos, o Poeta salienta diferentes facetas do carácter e sentimentos do senhor de Ítaca. Indignado com as serviçais do palácio, mostra todo o seu desagrado, deixa transparecer uma raiva incontida e denota até um certo mau génio: o seu coração ladrava, como cadela à volta dos tenros filhotes que ladra aos desconhecidos, esperando a luta. Não estranharemos, obviamente, ver ainda o multifacetado herói retratado por símiles que realçam a sua astúcia, evidentemente por meio da raposa, a sua determinação pelo confronto com a força dos tentáculos de um polvo, etc. Da exemplificação apresentada supomos já ser possível concluir que alguns dos animais utilizados em símiles acabam por adquirir força simbólica. Será o caso da bravura do leão, da sanha do lobo, da teimosia do burro. Curiosamente, também se encontra em Homero o primeiro o uso de cão como termo injurioso, por exemplo dirigido aos pretendentes de Penélope (Odisseia). Já a fidelidade canina não aparece pela primeira vez em nenhum símile e sim num dos mais comoventes episódios da Odisseia: o do cão de Ulisses. Diz Homero, ao descrever o regresso a casa do herói, que ninguém reconhece: um cão, deitado, ergueu a cabeça e as orelhas. Era Argo, o cão que o valoroso Ulisses treinara antes de partir para a sagrada Íhon, sem dele ter aproveitado. Outrora os jovens tinham-no levado à caça do veado, da lebre e das cabras monteses. Agora, abandonado, na ausência do dono, jazia ali, estendido sobre um monte de esterco de mulas e bois, donde os escravos vinham buscar com que adubar a grande quinta. Aí jazia Argo, coberto de parasitas. Reconheceu o homem que chegava, Ulisses; e, mexendo a cauda, arrebitou as orelhas. Não teve forças para se chegar ao dono", etc., etc..»

In Maria Isabel Gonçalves, Animais, Imagens e Símbolos nos Poetas Greco-Latinos, Animalia, Presença e Representações, coordenação de Miguel Alarcão e Outros, Lisboa, Edições Colibri, 2002, ISBN 972-772-353-5.

Cortesia de Colibri/JDACT