A Montagem de uma Conspiração.
Debates
de Comando e Direcção
«(…) Todavia, a ideia de participar em eleições visando alcançar uma sólida
presença parlamentar não era pacífica entre os realistas e, pelas suas
implicações, supunha um acto compromisso com o regime. Na realidade esta
posição, os urneiros, como então eram
conhecidos, caucionava um debate permanente entre os realistas sobre o tipo de
resistência a empreender contra o Estado liberal. A inexistência de uma
estrutura partidária ou sequer de intenção conspiratória, o exemplo recente do isolamento
do Remexido e, sobretudo, a contaminação de interesses que o regime
produzia haviam de diluir o integrismo doutrinário de alguns sectores do
miguelismo.
A base fundamental da posição urneira
estava definida desde os finais de 1839
e de 1840. O seu estudo não é, como
já foi referido, o objecto deste trabalho, mas a sua referência geral é
indispensável para a compreensão da dinâmica interna do campo realista. Os urneiros manifestavam um claro
distanciamento face à ideia de uma Restauração miguelista pela via
revolucionária ou simplesmente insurreccional e evidenciam a confiança de que o
Systema
da Urna, mediante uma maioria
parlamentar traria, indirectamente, consigo as mesmas concequências [sic] da
revolução, sem os inconvenientes e obstaculos desta [...].
Esta proposta de intervenção política supõe uma aliança com os setembristas,
bem como uma conduta moderada inscrita na recusa em aceitar cargos de
responsabilidade ou a presença na corte liberal. Além disso, procurava-se,
discretamente, contribuir para o desgaste das notabilidades liberais, no
intuito de preencher o espaço resultante da quebra da sua audiência. Os urneiros organizavam-se em torno do
jornal Portugal Velho e do seu mentor principal Albino Abranches
Freire Figueiredo. Esta orientação contava com os nomes menos conhecidos como
Ayres Sá Nogueira, Francisco Jerónimo Silva, Sancho Manuel Vilhena Saldanha e
outros.
Note-se que o envolvimento eleitoral tenderá a atrair cada vez mais as
notabilidades miguelistas, não só em Lisboa, como também nas províncias do
Norte. Assim, a representação realista nas cortes liberais acabou por
verificar-se, pela primeira vez, na sequência das eleições de Julho de 1842. Caetano Maria Ferreira Silva
Beirão (eleito pela Estremadura na lista da coalisão anticabralista) e Cipriano Sousa Canavarro (escolhido
por Trás-os-Montes entre os candidatos propostos pelos cabralistas) são os
dois deputados legitimistas que inauguram esta orientação legalista de
integração no sistema. O envolvimento parlamentar dos urneiros dava-se na mesma altura em que o outro segmento do campo
miguelista, defensor de uma postura subversiva e conspiratória, se começava a
organizar e a diligenciar a anuência oficial de Miguel, exilado em Roma. A demarcação e desconfiança entre os dois
grupos será crescente, não só na prática política, como no próprio discurso
ideológico. A polémica entre as duas facções tinha um impacto público e
pessoal, inviabilizando um esforço unitário de Restauração.
Nestas condições a corrente de opinião defensora de uma estratégia insurreccional
de resistência ao Estado liberal vai intentar a definição de um plano de
organização, destinado a aproveitar, sempre que possível, as circunstâncias
políticas do país a favor da causa miguelista. É, deve dizer-se, um projecto de
acção definido a partir do exterior, embora possua, como veremos, uma
persistente ramificação nalgumas áreas regionais. Este grupo que nós podemos
designar de ortodoxia subversiva definiu-se a partir de António Ribeiro Saraiva,
residente em Londres, sendo oficializado, digamos assim, por Miguel em Junho de 1842. Na realidade assistimos nesta
altura a uma renovação da confiança do monarca exilado no seu antigo agente
diplomático, a qual já lhe havia sido concedida em 1835. Mais do que isso, Ribeiro Saraiva passava a dispôr de uma legitimidade
própria para congregar meios e influências, tendo em vista o movimento da
Restauração:
Outro sim sou servido autorizar-vos
para que em Meu Real Nome, e pelos meios que julgardes mais acertados,
assegureis a todos os Portugueses, sem distinção, que quizerem aderir ao
verdadeiro sistema da restauração da legítima e antiga Constituição do Estado,
e do exercício dos Meus direitos, que Eu estou firmemente determinado a
observar, e fazer observar a dita Constituição, tal qual as leis fundamentais
da Monarchia [...].
Este discurso presente na Carta Régia de 2 de Junho de 1842 tem grande significado não só pela
autoridade que confere ao destinatário, mas também pelo seu próprio enunciado
verbal. Com efeito, o documento subscrevia, em termos globais, a linguagem
oficial que havia sido proposta ao monarca Miguel por Ribeiro Saraivar. Na
verdade, o que está em causa é a projecção pública do discurso miguelista no
país liberal, daí as insistências numa regeneração constitucional, embora definida na linha da tradição política
portuguesa. Além disso, avulta ainda a ideia de promover um distanciamento táctico
em relação à experiência governativa de Miguel,
lançando as bases para uma nova imagem política, capaz de alargar a audiência
da proposta legitimista a áreas da sociedade portuguesa desiludidas com a hegemonia
do cartismo cabralista. Os destinatários são os setembristas, cuja
cooperação é tornada como indispensável para um movimento de Restauração. Este
problema ganhará uma acuidade crescente à medida que se vão definindo os
esforços de resistência liberal ao cabralismo». In José Brissos, A Insurreição
Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847), Faculdades de Letras de
Lisboa, Edições Colibri, 1997, ISBN 972-8288-80-8.
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