sábado, 14 de setembro de 2013

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «Sabendo-se que Gil Eanes foi pressionado pelo infante a fazer a viagem precursora, duas interrogações surgem: ‘Aquela navegação de 1434 foi assim tão extraordinária?’ E que ‘objectivo pretendia o infante alcançar com ela?’»

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Os sábios henriquinos e a escola de Sagres
«Sobre a figura do terceiro filho sobrevivo de D. Filipa de Lencastre e de João I de Portugal, e não quinto filho, como por vezes tenho lido, e talvez em alguns casos por responsabilidade de uma gralha, que pousou em um pequeno texto por mim assinado, acumularam-se bastantes lendas, veiculadas sobretudo por alguns historiadores portugueses e ingleses; e estes com o fim de também reivindicarem para a sua terra, o infante Henrique era meio inglês, alguns dos, ou uma parte dos feitos gloriosos que, segundo se diz, tiveram nele a sua origem.
Num período de desenvolvimento da história romântica, Henri Major terá sido o primeiro responsável disso, ao editar em 1868 uma biografia panegírica do infante, tradução portuguesa de 1876: Vida do Infante D. Henrique de Portugal, Appellidado o Navegador, e seus Resultados; foi seguido, aliás, muito de perto pelo seu compatriota Raimond Beazley, com o seu ensaio Prince Henry the Navigator, The Hero of Portugal and of Modern Discovery 1394-1460 A.D., editado em 1895. Entre os dois coloca-se o nosso Oliveira Martins, que lhes não ficou atrás. Note-se, para começar, que este lendário filho do primeiro par real da nossa segunda dinastia é habitualmente designado, e em várias línguas, por Príncipe Navegador. Ora bem: O infante Henrique nunca teve título de príncipe, mas de infante, embora não escandalize que pelo primeiro seja tratado, eu mesmo o fiz por distracção há muitos anos, e Azurara assim o trata na crónica da Guiné; mas em respeito à verdade deve-se saber que nesse tempo a designação não estava em uso no reino de Portugal; o primeiro príncipe português, depois chamado Príncipe Perfeito, foi o futuro rei João II, sobrinho-neto do infante Henrique. E, quanto a navegações deixou-se transportar algumas vezes ao norte de África, a Ceuta para a tomar e depois descercar, a fim de ir a Tânger para um desastre, 1437, e nada mais (é quase certo que não foi com Afonso V a Alcácer Ceguer em 1458); ao todo, quando muito, umas três viagens, e bem curtas viagens; como quer que seja, também não repugna que lhe chamem navegador, desde que se entenda o epíteto num sentido um tanto metafórico: o infante Henrique não navegou muito, é certo, mas fez navegar muito os outros, e por isso merece o nome com que passou à História e que já ninguém pode tirar-lhe.
Fique, pois, aceite que é o príncipe navegador com as reservas aqui postas, mas sem grande significado em relação à imensa actividade que lhe está creditada, mesmo que a reduzamos só ao que se encontra ou pode ser comprovado. Deixando de lado os feitos guerreiros no norte de África, em que avulta o sucesso de Ceuta e o malogro de Tânger, o seu primeiro grande acto naval de vulto foi impulsionar as navegações para além do Cabo Bojador; e Gil Eanes, que pela primeira vez ultrapassou esse limite, em 1434, é geralmente apontado como o hábil e corajoso navegador que abriu o caminho à grande expansão marítima portuguesa, e logo a seguir europeia, na colónia atlântico, e depois em todos os outros novas colónias, a primeira, ainda bem dentro da Idade Média, fora a Terra Santa!
Sabendo-se que Gil Eanes foi pressionado pelo infante a fazer esta viagem precursora, duas interrogações surgem naturalmente: Aquela navegação de 1434 foi assim tão extraordinária? E que objectivo pretendia o infante alcançar com ela? À primeira pergunta é fácil encontrar resposta, se dermos crédito ao testemunho de um cronista do século XV, Gomes Eanes de Azurara: no capítulo X da sua Crónica dos Feitos da Guiné, ele diz textualmente: E já seja que o feito, quanto à obra, fosse pequeno, só pelo atrevimento foi contado por grande, porque se o primeiro que chegou acerca daquele cabo fizera outro tanto, não lhe seria tão louvado,…
A viagem de Gil Eanes não terá sido, por consequência, considerada no seu tempo como extraordinária, e só o é, na verdade, pelo facto de o navegador ter sido capaz de regressar! Lembremo-nos por ser ainda Azurara quem diz, no capítulo navegador ter sido capaz de regressar! Lembremo-nos por ser ainda Azurara quem diz, no capítulo VII da citada Crónica, haver notícia de uma tentativa no mesmo sentido levada a efeito por genoveses, Ugolino Vivaldi e seu irmão, que terminou ao que parece tragicamente; a memória desta malograda expedição estava muito viva no século XV, porque Antoniotto Usodimare, ao escrever aos seus patrícios uma carta sobre as navegações por si empreendidas em mares da Guiné, não hesita em dizer ter encontrado um da nossa nação, creio que das galés de Vivaldi, as quais se perderam; o qual me disse […] que da sua estirpe só ele restava; tratava-se naturalmente, se é que a notícia de Usodimare não foi simplesmente inventada, de um dos descendentes de algum tripulante dos navios de Vivaldi. Não menos trágico terá sido o fim do catalão Jaime Ferrer, que por meados do século XIV, segundo alguma cartografia desenhada por cartógrafos seus compatriotas, ultrapassou o cabo para se dirigir ao chamado rio do Ouro, sem que em qualquer crónica, documento oficial, ou outro texto avulso se tenha escrito que voltou». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT