Os sábios henriquinos e a escola de Sagres
«Sobre a figura do terceiro filho
sobrevivo de D. Filipa de Lencastre e de João I de Portugal, e não quinto
filho, como por vezes tenho lido, e talvez em alguns casos por responsabilidade
de uma gralha, que pousou em um pequeno texto por mim assinado,
acumularam-se bastantes lendas, veiculadas sobretudo por alguns historiadores
portugueses e ingleses; e estes com o fim de também reivindicarem para a sua
terra, o infante Henrique era meio
inglês, alguns dos, ou uma parte dos feitos gloriosos que, segundo se diz,
tiveram nele a sua origem.
Num período de desenvolvimento da história romântica, Henri Major terá
sido o primeiro responsável disso, ao editar em 1868 uma biografia panegírica do infante, tradução portuguesa de 1876: Vida do Infante D. Henrique de
Portugal, Appellidado o Navegador, e seus Resultados; foi seguido,
aliás, muito de perto pelo seu compatriota Raimond Beazley, com o seu ensaio Prince Henry the Navigator, The Hero of Portugal
and of Modern Discovery 1394-1460 A.D., editado em 1895. Entre os dois coloca-se o nosso
Oliveira Martins, que lhes não ficou atrás. Note-se, para começar, que
este lendário filho do primeiro par real da nossa segunda dinastia é
habitualmente designado, e em várias línguas, por Príncipe Navegador. Ora bem: O infante Henrique nunca teve título
de príncipe, mas
de infante, embora não escandalize que pelo primeiro seja tratado, eu
mesmo o fiz por distracção há muitos anos, e Azurara assim o trata na crónica da Guiné; mas em respeito à
verdade deve-se saber que nesse tempo a designação não estava em uso no reino
de Portugal; o primeiro príncipe português, depois chamado Príncipe Perfeito, foi o
futuro rei João II, sobrinho-neto do infante Henrique. E, quanto a navegações
deixou-se transportar algumas vezes ao norte de África, a Ceuta para a tomar e
depois descercar, a fim de ir a Tânger para um desastre, 1437, e nada mais (é quase certo que não foi com Afonso V a
Alcácer Ceguer em 1458); ao todo, quando muito, umas três viagens, e bem
curtas viagens; como quer que seja, também não repugna que lhe chamem navegador, desde que se entenda o
epíteto num sentido um tanto metafórico: o infante Henrique não navegou muito,
é certo, mas fez navegar muito os outros, e por isso merece o nome com que
passou à História e que já ninguém pode tirar-lhe.
Fique, pois, aceite que é o príncipe
navegador com as reservas aqui postas, mas sem grande significado em
relação à imensa actividade que lhe está creditada, mesmo que a reduzamos só ao
que se encontra ou pode ser comprovado. Deixando de lado os feitos guerreiros
no norte de África, em que avulta o sucesso de Ceuta e o malogro de Tânger, o
seu primeiro grande acto naval de vulto foi impulsionar as navegações
para além do Cabo Bojador; e Gil Eanes, que pela primeira vez ultrapassou esse
limite, em 1434, é geralmente apontado
como o hábil e corajoso navegador que abriu o caminho à grande expansão marítima
portuguesa, e logo a seguir europeia, na colónia atlântico, e depois em
todos os outros novas colónias, a primeira, ainda bem dentro da Idade Média,
fora a Terra Santa!
Sabendo-se que Gil Eanes foi pressionado pelo infante a fazer esta viagem
precursora, duas interrogações surgem naturalmente: Aquela navegação de 1434 foi assim tão extraordinária? E que
objectivo pretendia o infante alcançar
com ela? À primeira pergunta é fácil encontrar resposta, se dermos
crédito ao testemunho de um cronista do século XV, Gomes Eanes de Azurara:
no capítulo X da sua Crónica dos Feitos
da Guiné, ele diz textualmente: E já seja que o feito, quanto à obra,
fosse pequeno, só pelo atrevimento foi contado por grande, porque se o primeiro
que chegou acerca daquele cabo fizera outro tanto, não lhe seria tão louvado,…
A viagem de Gil Eanes não terá sido, por consequência, considerada no seu
tempo como extraordinária, e só o é, na
verdade, pelo facto de o navegador ter sido capaz de regressar! Lembremo-nos
por ser ainda Azurara quem diz, no capítulo navegador ter sido capaz de
regressar! Lembremo-nos por ser ainda Azurara quem diz, no capítulo VII da
citada Crónica, haver notícia de uma tentativa
no mesmo sentido levada a efeito por genoveses, Ugolino Vivaldi e seu
irmão, que terminou ao que parece tragicamente; a memória desta malograda
expedição estava muito viva no século XV, porque Antoniotto Usodimare,
ao escrever aos seus patrícios uma carta sobre as navegações por si
empreendidas em mares da Guiné, não hesita em dizer ter encontrado um da nossa nação, creio que das galés de
Vivaldi, as quais se perderam; o qual me disse […] que da sua estirpe só ele
restava; tratava-se naturalmente, se é que a notícia de Usodimare
não foi simplesmente inventada, de um dos descendentes de algum tripulante dos
navios de Vivaldi. Não menos trágico terá sido o fim do catalão Jaime Ferrer,
que por meados do século XIV, segundo alguma cartografia desenhada por cartógrafos
seus compatriotas, ultrapassou o cabo para se dirigir ao chamado rio do Ouro,
sem que em qualquer crónica, documento oficial, ou outro texto avulso se tenha
escrito que voltou». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas
na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega,
Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.
Cortesia de Vega/JDACT