A Ínclita Geração
«(…) Mas enquanto o rei João I era vivo, ninguém podia prever até que
ponto chegavam as pretensões daquele filho bastardo, que, casando com a filha
de Nuno Álvares Pereira, fundara a mais abastada e poderosa casa fidalga do
reino, depois da casa Real. Já alimentaria desmedidas ambições, embora tivesse
o cuidado de as dissimular em presença do monarca seu pai. Este teve, no
entanto, algumas culpas nos recalques desse filho natural, que mais tarde
haviam de explodir com tanta violência, que deixariam manchadas para sempre as páginas
da história lusitana num dos seus períodos mais brilhantes. Foi precisamente no
início da expansão portuguesa nas Colónias. Castela, após uma série
ininterrupta de desaires sofridos, por obra da espada invencível de Nun'Álvares,
persuadira-se finalmente de que a conquista do trono português não passava de
sonho insensato. Assinaram-se, em 1411,
entre os dois países, pazes eternas, para as quais muito contribuíra a feliz circunstância
de ser a rainha castelhana irmã de D. Filipa, rainha de Portugal. Um novo ciclo
histórico abrira-se neste reino, mercê de uma profunda Revolução de espírito acentuadamente burguês.
Terminadas as lutas contra o vizinho peninsular, a fidalguia, a classe
guerreira, quedara-se numa ociosidade que, além de avessa à sua índole, podia
transformar-se em agente de distúrbios no reino, transtornando um certo
equilíbrio que a Revolução
trouxera às três classes sociais, nobreza,
clero e povo, tacitamente submissas à autoridade de um monarca, que alcançara
as simpatias gerais e um prestígio suficientemente forte para se fazer
respeitar nas suas decisões, que procurava tornar tão equitativas quanto
possível. Quem mais se temia de que este equilíbrio se alterasse era a classe
burguesa, em franca ascensão política, embora seus interesses ainda se
confundissem em parte com os do povo trabalhador de que era oriunda. Ela já
conseguira, mercê da acção inteligente e subtil de homens como João
das Regras, Lourenço Vicente, arcebispo de Braga, João Afonso Azambuja e
outros, que a nobreza, ao defender a independência do reino contra as arremetidas
de João de Castela, simultaneamente defendesse uma nova ordem social, instaurada
pela Revolução
de 1383, que tivera seu começo visível na morte do conde Andeiro.
Extintos os últimos ecos das batalhas, consolidado o trono português,
iniciada uma nova dinastia, à qual João I imprimia o cunho da sua argúcia e da
sua prudência, e sua mulher D. Filipa o selo da mais austera moralidade,
verdadeira obra de regeneração de costumes na corte e no reino, a burguesia
principiava a recear que o período de quietação que se seguira, viesse a ser
perturbado por uma nova geração de nobres, ansiosa por engrandecer-se, à
semelhança de seus pais e avós. Classe guerreira por excelência, a nobreza não conhecia,
ou não admitia outra honrosa tarefa para engrandecimento pessoal senão a da
guerra. A carreira eclesiástica, em que alguns raros ingressavam, não bastava
para saciar a sua sede de riqueza e de honrarias. O Comércio era considerado
vil para homens que manejavam uma espada e se orgulhavam de ser cavaleiros; a Lavoura
começava a ser encarada como ocupação própria só de servos, sob as vistas
distantes dos senhores, a quem apenas interessava a renda, por vezes cobrada
com certa violência. Os torneios eram bonitos, mas não passavam de lutas
simuladas, exercícios vistosos, um desporto, sem mais finalidade do que o de
agradar a donas e donzelas. Só na guerra a classe nobre julgava encontrar
missão à altura da sua importância social. Como que a denunciar a inquietação
da juventude fidalga, as próprias aspirações dos filhos mais velhos de João I,
em situação semelhante à dos filhos de tantos senhores em todo o reino, tornavam-se
bem eloquentes aos olhos observadores dos conselheiros deste monarca, norteados
pelo espírito burguês da Revolução que gerara a dinastia de
Avis. Não havia a menor dúvida: era preciso achar-se um derivativo, uma
ocupação para aquela mocidade estuante de vida, ansiosa por esbanjar as suas
energias à vontade.
O antigo mestre de Avis,
agora monarca, bem sentado no seu trono, ficara farto de guerra e sentia-se com
direito de passar o resto dos seus dias repousadamente. Como em regra acontece
aos homens de idade madura, já não entendia muito bem a geração que lhe sucedia.
Acomodara-se à ideia de que os filhos mais velhos, ao rondarem as suas vinte
primaveras, deviam sentir-se muito felizes por viverem num reino em paz, onde
tudo parecia achar-se nos seus definitivos lugares, sem que fosse preciso
empreender modificações. Mas não era bem assim. Os rapazes tinham as
suas aspirações, embora lhes falecesse a coragem de confessá-las ao pai, por
quem experimentavam uma mescla de respeito e de temor, inculcada em seus
espíritos pela educação britânica de sua mãe».
In Mário Domingues, O Regente Pedro,
Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História de
Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.
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