André
«(…) Teria tempo de fechar por um minuto os olhos; mas eles vieram e
tudo foi inútil; eis que ali estavam, em relevo, Jacob e o Anjo sobre a parede
clara, provocantes sorrindo como répteis verdes vermes gordurosos em seu visco
atraente; abri os olhos ácidos quando as paredes se moveram, imanizadas se
soldaram em cima sob o céu e, compasso opaco, iniciaram mais venenosas e suaves
o encontro dos braços; urgente partir, subir a estrada onda, caminhar para a
vida do lado de lá da lomba, ultrapassar a curva que não sei se existia; atirei
o pé ao travão e fui tirando a embraiagem até sentir o som diferente; ouvido
este, destravei e parti a toda a força dos motores; receei não ter tempo e dei
uma patada na embraiagem para engrenar a segunda; os muros aproximavam-se
depressa; impossível alcançar o cimo; na parede, porém, eles permaneciam e
ambos morreriam de seguida, mas eu queria vê-los e viver queria realizar o
impossível, só descendo a ladeira íngreme; o pé na embraiagem, meti marchatrás; o carro deu um salto,
precipitou-se para trás; os cabelos do Anjo em luta com Jacob acenavam do
vácuo, o carro despenhava-se, arranhava as paredes, estilhaçavam-se os vidros e
eu não via o espelho.
Por fim e lentamente o carro mergulhou com um baque sereno, com bolhas
a saírem do motor e dos bancos e da boca de espanto, nas águas profundas
lodosas do lago sob a montanha alta; no meio da noite, no seu grande regaço,
foi então recolhido um automóvel; da banda do volante a porta aberta, com os
faróis e farolins acesos; próximo, o corpo de um adolescente em decúbito
deitado como quem adormece; faltam-lhe os dois sapatos e na perna de cima, ou
seja a esquerda, entre a meia e a dobra das calças, tem uma larga lasca de lata
enterrada; em lado algum do corpo se vê sangue senão talvez na boca,
derramando-se sobre as algas móveis; pela paz e delicadeza do seu sono, o corpo
do jovem não apavora os peixes; estamos na primavera dos peixes; em Abril ou
Março; dele a face foi envelhecida para uma era de cera; os braços junto ao
peito; por cima, água metálica, riscos verdes; o grande peso no mar das quase
manhãs fechadas.
As nuvens pardas do sono; um silêncio só frio e aguçado; olhos abertos
de futuro são repasto dos peixes; sobre as águas uiva um cão branco, cego,
coxo; no fundo um carro desventrado; os farolins do céu duros como facas; as
estrelas, buracos por onde passa a luz do outro lado; estrelas rodarão e o tempo
mudará; na cidade, prédios dentados, as árvores dos parques pegadas à noite e o
mistério das ruas inclinadas; eléctricos passando certos cheios de pressa e as
pessoas neles transportando em alforges de trabalho a sua morte; a morte deles
vai arrumada e espera; é disso que eles falam; de suas mortes breves; o seu
seguro modo de ir morrendo; um dia vem a morte, leva um deles e pronto; depois
leva o vizinho e pronto.
Assim sempre; as ervas serão rasas e não aterradoras; indecisão e dor;
eis que alguém sente, subindo pelas veias devagar, a força urgente de um touro
novo; André dorme; o sono não é fácil mas é sono; tenta acordar; faz um pequeno
esforço; não consegue; adormece; vem o sono e o sonho; os monstros ancestrais
não dormem.
Francisco
Não dormem aqueles a quem devo o que sou; meu avô arranjou a fortuna
que tenho e que não aumentei, pelo contrário; devia pôr de parte tudo que não
dá lucro, foi o que ele me disse pouco antes de morrer, e não tive tempo nem
força para isso; velho, tinhas razão; eu te procuro nos indecisos edifícios de
névoa da memória e de ti o que encontro é só silêncio, um silêncio que parece nem
respira e que de quando em vez por entre o árduo fôlego consente umas palavras
antigas e serenas, de quem usou a vida a saber a verdade, talvez tão-só a
sombra da verdade, mas uma sombra verdadeira, não ilusória como a de quase
todos nós, teus descendentes.
Escuto tua voz vaga entrecortada de asma e a tua saudade dum mundo que
morreu acende mal e brevemente, vem-me a tua ilusão de procurar um firme
estádio neste mundo quando tudo mudou e vai ficar para quem? Quando aqueles
sete mil hectares de terra campa e virgem, de estevas e sargaço e rosmaninho do
tamanho de homem ou maior ainda, com séculos de crescimento, com pernadas da
grossura de pernas, de um velho e cretino marquês ou conde, foram leiloadas e
uma família inteira se juntara para os comprar oferecendo de cada vez dez patacos
(isto antes de mil e novecentos) e a oferta ia já heroicamente em vinte
e cinco contos, tu vieste com a tua prosápia e o teu dinheiro e ofereceste
simplesmente, sem levantar o braço, numa voz grave, fácil e definitiva lá do
fundo da sala, para onde todos se voltaram, gratos, estarrecidos, vinte e oito
contos e todos se cerraram num murmúrio». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial
Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.
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