quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Cruzada São Sebastião do Leblon. Uma etnografia da moradia e do quotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro. Soraya Silveira Simões. «Erradicada da paisagem ‘chic’ da Lagoa, a favela, não foi extinta do imaginário urbano, trazendo custos para os moradores do Bairro São Sebastião, hoje conhecido como Cruzada»

Cortesia de wikipedia

Resumo
«Cruzada São Sebastião do Leblon: uma etnografia da moradia e do quotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro trata de analisar as implicações sociais, urbanísticas, políticas, económicas e morais da inscrição de uma população remanescente de assentamentos precários e de baixa renda, sobretudo proveniente das favelas da Praia do Pinto e da Ilha das Dragas, no coração chique do espaço residencial e comercial da Zona Sul carioca, entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e as praias de Ipanema e Leblon. A partir de trabalho de campo realizado nos últimos quatro anos junto aos moradores dos 10 blocos de apartamentos do conjunto Cruzada São Sebastião do Leblon, e da consulta ao extenso noticiário jornalístico devotado ao controverso tema das políticas públicas de remoção ou urbanização das favelas cariocas, a etnografia procura evidenciar a profundidade dos estereótipos, das categorias de acusação e de estigmatização com as quais os moradores da Cruzada se defrontam quotidianamente, ao longo dos últimos 50 anos, experienciando a dura condição de vizinhança indesejável diante dos anseios de recém chegados suburbanos atraídos pelo estilo de vida e pelo gosto estético associado ao morar na Zona Sul, dos interesses particularíssimos de empresários morais e da sanha de sequiosos especuladores imobiliários. Além da pesquisa de campo de  carácter etnográfico e da análise da extensa bibliografia académica devotada ao tema, sobretudo aquela produzida a partir dos anos 1960, recorreu-se ainda ao conjunto de leis e decretos e ao texto de programas sociais e habitacionais concebidos seja pelo Estado seja por instituições laicas e religiosas. Por fim, este trabalho procura restituir o ponto de vista dos actuais moradores da Cruzada sobre si mesmos (suas histórias de vida, trajectórias e perspectivas). Mas não somente, pois alcança ainda a visão que compartilham sobre o entorno e seus vizinhos, a partir da experiência de residirem no emblemático empreendimento associado de modo incontornável ao nome de Dom Hélder Câmara, idealizador e criador da Cruzada e, naquele então, arcebispo-auxiliar do Rio de Janeiro.

Apresentação
Quando decidimos pela realização desta pesquisa, tínhamos em mãos apenas um endereço. E, com ele, uma lista de questões que passaríamos a frequentar antes mesmo de nossa primeira ida a campo. Isto porque as coordenadas, como dizem os franceses, ou seja, um endereço na cidade diz muito a respeito da experiência urbana que pode ter o seu morador. O nosso ponto de partida foi então este: o endereço e, com ele, o tipo de experiência que poderia se impor ao citadino, em especial aquele habitante de uma cidade como o Rio de Janeiro. O lugar escolhido para a realização deste trabalho era especial. Afinal, tratava-se do testemunho mais eloquente dos resultados de uma acção política da Igreja Católica iniciada em 1955 e apoiada pelo governo federal. A Cruzada São Sebastião, fundada por Hélder Câmara, na época arcebispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, teve como propósito urbanizar todas as favelas do então Distrito Federal em dez anos.
A proposta era não somente dispendiosa, mas ousada, pois fazia face a política preponderante de erradicação de favelas que durante quase todo o século XX forçou uma extraordinária diáspora de centenas de milhares de habitantes da cidade do Rio de Janeiro em direcção às periferias distantes, mal-servidas em transportes e infraestrutura. Em meio a esta grandiosa operação que se estendeu ao longo dos anos por intermédio de leis, decretos e políticas públicas da qual participavam engenheiros, médicos, sanitaristas, políticos, assistentes sociais e, sobretudo, a polícia, a Cruzada São Sebastião beneficiaria os moradores das favelas mantendo-os próximos ao local de trabalho e lazer, ao invés de varrer o pobre para longe da casa do patrão, como era comum se dizer na época. A única favela inteiramente agraciada pela urbanização prevista pela Cruzada foi também a primeira a ser escolhida pelo arcebispo Hélder Câmara. A Praia do Pinto, situada no Leblon, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, e sua vizinha, a pequena Ilha das Dragas, seriam extintas após a mudança de seus moradores dos barracos para os apartamentos dos dez prédios do Bairro São Sebastião do Leblon, construído em terreno contíguo à favela.
Como o arcebispo Hélder havia antevisto, o Leblon se transformou no bairro mais valorizado da cidade. Mas, apesar de todos os seus esforços, e do que esperava como resultado do seu empreendimento, contrariando todas as suas previsões, as coisas não se passariam exactamente como as concebera. Erradicada da paisagem chic do entorno da Lagoa a favela, no entanto, não foi extinta do imaginário urbano, trazendo altos custos para os moradores do Bairro São Sebastião, hoje conhecido apenas como Cruzada. Nos quase cinco anos em que venho realizando a pesquisa de campo junto a seus moradores, pude aprender como o passado da favela se faz presente em seus quotidianos. Os meios pelos quais os significados do endereço chegam a afectar suas vidas é, em linhas gerais, o objecto deste trabalho.  E para dar conta desse propósito dividi a tese em quatro partes, cada uma contendo dois capítulos. A primeira parte trata do início da pesquisa de campo quando, em 2003, por uma feliz coincidência, os moradores do Leblon encontravam-se empenhados numa controvérsia, mobilizados que estavam em torno de um acontecimento: a construção de um moderno shopping center a ser levantado no bairro, justamente sobre uma pedra contígua aos prédios da Cruzada São Sebastião. As associações de moradores do Leblon ora questionavam sobre os impactos ambientais e os transtornos no trânsito; ora sobre a segurança, o lazer e a possibilidade de emprego. Ninguém ficava indiferente ao assunto. Tivemos, com isso, uma oportunidade excepcional para conhecermos as diferentes representações dos habitantes sobre o bairro e consequentemente as fronteiras invisíveis que, no entanto, demarcavam as muitas diferenças de uso e de status existentes no Leblon.
Em síntese, o momento expressava de forma candente o bairro em suas múltiplas dimensões: como unidade administrativa de uma cidade e, portanto, circunscrito segundo os critérios do planeamento urbano; como vizinhança e espaço de uso de seus habitantes; e, por fim, como uma arena na qual muitos citadinos, diante de uma intervenção como aquela, se sentiam impelidos a manifestarem-se contra ou a favor, utilizando, para tanto, inúmeras razões, argumentos, justificativas». In Soraya Silveira Simões, Cruzada São Sebastião do Leblon. Uma etnografia da moradia e do quotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro, Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, ICHF, PPGA, Niterói, Brasil, 2008.

Cortesia de UFF/JDACT