«(…) Como Góis tinha a noção de que a sua habilidade linguística estava
bem pouco à altura do que ambicionava, apreciava sobremodo o auxílio do amigo e
recompensava-o com liberalidade. É possível que Góis sustentasse Grapheus financeiramente,
e é certo que lhe mandava muitas iguarias importadas do vasto imperio
português. Grapheus não podia retribuir em dinheiro a generosidade do
seu patrono mas, ciente do desejo que Góis tinha de uma fama imorredoura,
prometeu imortalizar-lhe o nome através do poema citado. De acordo com a prática
humanística corrente Grapheus incluiu um retrato à pena de Góis, traçado
com as pinceladas linguísticas de um verdadeiro artista. Grapheus
empregou epítetos altamente lisonjeiros como sincero, franco, honesto, alegre, leal e alheio à tristeza na descrição do
carácter do retratado, mas não exagerou indevidamente e exprimiu o que foi
muitas vezes ecoado pelos amigos de Góis. Um desenho, o único retrato que há de
Góis, possivelmente executado por Dürer, confirma a caracterização feita
por Grapheus. O retrato irradia brandura e sinceridade; na reprodução do
queixo forte e dos lábios estreitamente cerrados evoca a bem conhecida força de
convicção de Góis. Como a honestidade intelectual e a bondade eram os traços da
personalidade de Góis especialmente notados por Grapheus e por outros amigos,
não se pode imaginar, como afirmam alguns autores, que os contemporâneos se
iludissem ao aceitarem como uma imagem fiel o retrato que exprime tais
qualidades. De facto, a veracidade de Góis muitas vezes chegava à temeridade e
causava-lhe grandes sofrimentos e dificuldades.
Em contraste com o estudo da língua e literatura clássicas, em que o
auxílio de Grapheus era precioso para um principiante, o pendor de Góis
para a história, cedo estimulado pelos interesses do próprio rei Manuel I, era
bem definido e aliava-se à atracção e curiosidade pelos feitos de além-mar dos
portugueses. As viagens diplomáticas ofereciam-lhe uma oportunidade ideal para
alargar o conhecimento geral e a perspectiva da historia, mas sempre que possível
tentava também aprofundar e aumentar o conhecimento das terras distantes que
tinham sido abertas ao estudo dos ocidentais pela exploração marítima. Como já
foi dito atrás, os dois países que mais lhe excitavam a imaginação eram a Etiópia
e a Índia; enquanto que aquela actuava nele como um estímulo para o pensamento
religioso, esta atraía-o do ponto de vista histórico e parece ter sido um
interesse constante. Assim, por exemplo, nas várias visitas que fez a Augsburgo,
Góis
examinou a famosa biblioteca de Peutinger e leu parcialmente um livro importante para um projecto que tinha de
escrever, no futuro, uma historia da Índia. Mais tarde, quando estava bastante
embrenhado nesse plano, Gois pediu a Johann Jacob Fugger que lhe
adquirisse a obra, pois Peutinger não era um amigo pessoal a quem pudesse
pedir semelhante favor.
O conhecido mercador de Augsburgo fez o que pôde mas Peutinger
recusou, não querendo desfazer-se das suas preciosidades. Fugger
aconselhou Góis a aguardar até à morte de Peutinger, assegurando-lhe que
ele já tinha um pé na cova. Os
motivos patrióticos subjacentes à escolha de assuntos históricos representavam
uma força central da estrutura intelectual de Góis e reflectiam-se nas relações
que tinha com os seus numerosos amigos pela Europa fora. Por exemplo, Johann
Jacob Fugger era um dos seus excelentes
amigos na Alemanha, mas cerca de 1540
as relações entre ambos tornaram-se muito tensas devido a um desacordo sobre as
observações feitas por Sebastião Münster a respeito da nação espanhola
na sua edição da Geografia de Ptolomeu. Góis, identificando-se com a Espanha
como nação irmã, refutou vivamente as afirmações ofensivas de Münster
(baseadas em informações dadas por Servetus) num panfleto intitulado Hispania. Como a Península Ibérica
representava para ele uma unidade nacional, Góis tratou tanto da
Espanha como de Portugal no seu panfleto.
Fugger melindrou-se perante a dureza com que Góis tratou o seu compatriota,
famoso professor de Hebreu na Universidade de Basileia, e escreveu-lhe uma
carta em que lhe manifestava o desagrado que sentia. O português, embaraçado,
respondeu a Fugger com protestos de estima pela Alemanha, país que ele tinha sempre honrado como qual-
quer coisa de divino, e
afirmando que na realidade tinha sido bastante brando com Münster pelo facto de
ele ser alemão». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1967.
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