«(…) Em resumo, reverendos senhores, por um lado a cidade cheira a
enxofre, o que corrobora a presença do Diabo, que me foi denunciada
oportunamente por um espião especializado da minha confiança. E, por outro,
temos que o nosso jovem rei, de apenas vinte anos, foi às pu... Reduzida a
esses termos, Excelência, a coisa não passa de mera anedota. Mas, e o importante? Poderemos esquecer-nos
de que a Armada das Índias está a chegar, e de que na Flandres se prepara uma grande batalha? Vistas dessa
maneira, as coisas mudam...
O Inquisidor-mor, com ar bastante aborrecido, meditou. - Mudam, com
efeito, padre Villaescusa. E que propõe Vossa Paternidade para atalhar o mal? O padre Villaescusa compreendeu
claramente, pela primeira vez, o que vinha sentindo no mais obscuro das suas entranhas:
que dependia da sua palavra o futuro do mundo. E não se apressou a responder,
nem o fez com arrebatamento, mas sim com tranquilidade. - Em primeiro lugar,
Excelência, proponho para hoje à tarde uma reunião do Supremo, com a
participação dos teólogos mais acreditados da cidade. E, em segundo lugar, como
medida de precaução, que se tire do palácio o confessor do Rei, conhecido
judeu, e que se meta nas prisões do Santo Tribunal essa Marfisa...
- Que não é judia, mas sim
cristã velha, e boa cumpridora dos mandamentos da Igreja. Tenho a certeza de
que, a esta hora, obedece ao preceito de assistir à missa dominical, e de que
estará na sua paróquia. - Proponho que a prendam por suspeitas de endemoninhamento.
A atitude do Rei, desde que chegou ao palácio, esta manhã, é altamente
suspeita: anda metido consigo, como pasmado. E quem, senão ela, pode ser a responsável? Metê-la
num calabouço a pão e água parece-me uma sábia medida de precaução. Quanto ao
confessor do Rei... que o senhor distingue com o seu afecto... - interveio o
padre Rivadesella.
- Não o amo mais do que pode
amar-se um próximo perigoso, reverência. - Bem se vê: mas eu não posso esquecer
que o padre Valdivielso é franciscano. - O hábito não faz o monge. - Neste
caso, quem sabe? Parecia que
os dois frades iam reproduzir a antiga e famosa contenda entre os diversos e
inimigos ramos filiais de São Francisco. O Inquisidor-mor atalhou com mão
firme. - Far-se-á tudo o que pede, padre Villaescusa, far-se-á o mais
rapidamente possível. Para já, ficam os dois convocados para a reunião do
Supremo, esta mesma tarde, mas não demasiado cedo, por causa da canícula. Digamos
às cinco. O padre Villaescusa inclinou e cabeça. - Parece-me uma hora pouco
usual, mas aceito. - Nesse caso, ide-vos.
Depois de os dois frades se terem despedido, e de supostamente terem
abandonado o edifício do Santo Tribunal, o Inquisidor-mor abanou suavemente a
campainha. Entrou um fâmulo. - Diz ao meu criado Diego que venha cá. O criado
Diego passava dos cinquenta anos, tinha aspecto de beato e, por baixo, um
sorriso cínico. - Sabes onde vive Marfisa. Vai ter com ela e diz-lhe uma única
palavra: esconde-te. E faz o recado voando. - Sim, Excelência. O criado
Diego saiu, sem mudar de sorriso, e o Inquisidor-mor, ajudado pela canícula e
pelas boas recordações dos vinte anos que tinha passado em Roma, jovem dominado
pela paixão teológica, entregou-se docemente aos prazeres de uma soneca.
Foram encontrar o Rei à porta dos aposentos secretos, a que muita gente
chamava também proibidos. A grande chave de ferro continuava na fechadura, e o
Rei, encostado à ombreira, parecia em êxtase, o que quer dizer que
tinha cara de tolo. Não respondeu aos primeiros chamamentos do seu moço
de câmara, e só quando foi sacudido com certa força é que no seu rosto aconteceu
algo de semelhante ao despertar de um sonho. O relógio do palácio dava as
badaladas das onze, e o moço de câmara sussurrou-lhe, primeiro, e gritou-lhe
depois: - Majestade, são horas de ir à missa, e toda a corte espera. Vossa
Majestade tem que mudar de roupa. O Rei, ainda meio estremunhado, deixou-se
levar. - Pois, tenho que mudar de fato. Pois, tenho de ir à missa com a corte. Estará lá a Rainha?
O moço de câmara conduziu-o até aos aposentos reais por corredores
pouco ou nada frequentados àquela hora do dia, talvez pelo muito que o eram de noite: dali partiam os
passadiços secretos, os meandros pelos
quais deslizava o pecado nocturno. Em breve, o Rei viu-se diante do seu
grande espelho, e o moço de câmara com dois fatos nas mãos. - De preto ou de azul-celeste, Majestade? Quase
sem pensar, o Rei respondeu-lhe que de preto, e, quando se achou vestido, pediu
o colar de ouro para quebrar um pouco aquela escura monotonia. Já batiam à porta,
e perguntavam se o Rei estava pronto. - Vai num credo! - respondeu o moço de câmara,
e apressou-se a abrir a porta». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del
Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não
demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT