sábado, 14 de setembro de 2013

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «Não é verdade que todas as regras da futura navegação astronómica, com excepção do “regimento das léguas” (este aliás adaptado da raxon ou toleta de marteloio), andavam de há muito em tratados do “astrolábio ou do quadrante?”»

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Os sábios henriquinos e a escola de Sagres
«(…) Nada disto oferece qualquer dúvida. Creio, porém, que deve ser tomada à conta de balela uma historieta que se impingia, com a melhor boa fé (diga-se) nas escolas primárias do meu tempo de criança, parafraseando, por vezes com um pouco de imaginação, o seguinte passo escrito por uma autoridade de peso, como é considerado o cronista João de Barros: mas os navios, que daquela vez e de outras foram, em tempo do infante, e vieram, não descobriram mais que até o cabo Bojador […]. Porque como este cabo começa de incurvar a terra de mui longe, e ao respeito da costa, […] lança e boja para oeste perto de quarenta léguas (onde deste muito bojar lhe chamaram Bojador...); tal nome teria sido posto por Gil Eanes, segundo o mesmo Barros: … o qual nome lhe ele [Eanes] pôs pelas razões que atrás dissemos (Década I, capítulo IV). O que não é verdade: Bojador não tem nada a ver com bojar; é aportuguesamento do nome que o cabo tinha no século XIV Buyetder e outras formas aparentadas, como a cartografia mostra.
Passar o cabo não seria considerada uma empresa difícil; árduo era o regresso ao continente europeu de navios que se encontravam numa área marítima em que ventos e correntes contrariavam por via de regra tal retorno por uma rota directa e costeira. Azurara não terá compreendido o alcance da viagem de volta de Eanes; tão-pouco a entendeu João de Barros, que concorda com Azurara ou o utiliza, mas exagerando um pouco o que ele escreveu, quando afirma: e posto que a obra desta passagem [do Cabo Bojador]  não foi grande em si, […] então lhe foi contada por um grande feito, e houveram que era igual a um dos trabalhos de Hércules [...].
Foi por vencer essa dificuldade, a partir do exemplo de Gil Eanes, que marinheiros posteriores vieram a perder de todo o receio de se engolfar no oceano; com uma consequência do maior significado: o reconhecimento da necessidade de alterar a arte de navegação, introduzindo nela práticas astronómicas (observação de alturas meridianas de estrelas, e logo a seguir determinações das latitudes geográficas do lugar dia a dia ocupado pelo navio), que constituíram os primeiros mas decisivos passos da transformação dessa arte numa técnica.
E eis que, para explicar esta alteração, ou com o pretexto dela, se introduz capciosamente um novo mito na história das navegações portuguesas. Segundo uma lenda que em torno da sua figura se enredou, o infante Henrique, como infante avisado, soube prever tudo a tal respeito, embora haja quem de tal não esteja convencido, por admitir, e com as razões de uma lógica transparente, que o infante decerto nada conhecia dos regimes de ventos e correntes existentes em mares para sul do cabo Bojador, e só com poderes divinatórios, que decerto não teve, saberia que os seus marinheiros encontrariam a solução de os contornar e lançariam mão da astronomia mais elementar, para se não perderem no mar imenso. Mas isso, dizem os defensores do endeusamento do infante  Henrique, é o que pensam as pessoas simples ou de fraco entendimento, grupo em que serei decerto incluído; eles, os de forte entendimento, vêm as navegações dos séculos XV e XVI à medida dos grandes feitos tecnológicos do nosso tempo, ou seja, com estudos prévios até à menor das minúcias, para serem mínimas as probabilidades de fracasso. Quem assim pensa não tem qualquer dificuldade em visionar o infante empenhado, primeiro em construir um observatório em Sagres, e depois, ou simultaneamente (tanto faz), em reunir à sua volta um punhado de sábios de grande nomeada.
Vamos por partes, a começar pelo fantástico observatório, o primeiro que houve em Portugal, segundo escreveu o erudito Beasley: mas não foi só Beasley: muitos historiadores que se ocuparam do infante referiram a construção do célebre observatório, e a ideia estendeu-se no tempo até os nossos dias, passando de autor em autor sem qualquer reparo, porque nunca houve o mínimo cuidado em saber em que dados ela se baseia.
Ainda não há muito, um jovem historiador alemão, Ulrich Knefelkamp, ao fazer um resumo analítico da lenda medieval do Preste João, em um dos últimos capítulos do seu estudo tropeça no observatório henriquino lamentavelmente, porque a partir daí logo surgem ao leitor dúvidas quanto à fidedignidade das informações que anteriormente nos transmitiu, e nos pareciam um bom apanhado sobre o tema de que no livro se ocupa. Eis o que escreveu: as condições iniciais para as navegações dos Portugueses têm sido para uns a tomada de Ceuta levada a bom termo (1415) e para outros a edificação de uma academia de navegadores com um observatório em Sagres [….]. Assim, ele [o infante] fez construir em Sagres majestosos edifícios, nos quais reuniu muitas informações e homens capazes, a fim de preparar cuidadosamente o seu projecto. É claro, creio, a opção do autor para a segunda alternativa, a de observatório e sábias informações.
Ora um observatório astronómico, em tempos do infante, é desde logo uma ideia suspeita; mas admitindo que o infante Henrique tivesse assim esbanjado o seu dinheiro (ou o dinheiro da Ordem de Cristo), para que lhe servia tal observatório? Não é verdade que todas as regras da futura navegação astronómica, com excepção do regimento das léguas (este aliás adaptado da raxon ou toleta de marteloio), andavam de há muito em tratados do astrolábio ou do quadrante?»

In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT