Ainda o Segredo de Estado
«(…) A origem que apontamos para as cartas portuguesas sobreviventes explica
bastante bem que elas se encontrem no estrangeiro, facto que tanto surpreendia Jaime
Cortesão e o levou a escrever vitoriosamente: A razão é óbvia: quanto mais
secretas mais foram objecto da curiosidade de estranhos! E foram-no, de
facto; mas pelas novidades que transmitiam: quando o duque de Este deu 12
ducados de ouro pelo planisfério dito de
Cantino, em 1502, não foi com
a cavilosa ideia de se preparar para fazer concorrência ao comércio marítimo de
Manuel I; foi para saber como era o mundo!
A cartografia merece ainda mais um momento de atenção. Em Portugal ela
iniciou-se cerca de 1445, como há
poucos anos mostrou Charles Verlinden, a partir de uma leitura atenta da
Crónica
dos Feitos da Guiné. Repito: essas cartas, com a costa africana
traçada como coisa vista por olho,
eram desenhadas para uso dos pilotos, e nesse uso se gastaram e perderam. Não
vale a pena dizer e repetir que delas copiaram os contornos e topónimos para as
suas alguns cartógrafos italianos, porque estes, exímios como eram, podiam muito
bem concluir os seus desenhos a partir de relatos e informações avulsas, como aliás
fizeram os primeiros cartógrafos portugueses. As cartas desenhadas em Portugal
no século XV não se limitam, porém, às duas que Jaime Cortesão contou,
embora essas sejam importantíssimas para a sua teoria, facto que se não
lembrou de assinalar.
A mais antiga, de Pedro Reinel, datará de c. 1485
(segundo Armando Cortesão): a outra está datada de 1492 e assinada por Jorge Aguiar, que ninguém sabia ter sido
um cartógrafo até 1968, data do
aparecimento da carta; ambas representam a costa ocidental africana (em
parte, sobre o continente) até limites que ficam muito aquém dos
reconhecimentos feitos à data dos desenhos. Esta particularidade é
absolutamente segura em relação à de Jorge Aguiar: em 1492 já Bartolomeu Dias torneara
há quatro anos a ponta sul da Africa. Eis
uma prova que Se não pode recusar! A carta ficou assim em obediência à teoria
de segredo dirão, triunfantes, os sigilistas
vigilantes. Tenho duas razões para supor o contrário. A primeira é ignoramos de todo a
razão ou razões porque Jorge Aguiar terminou ali o seu desenho, e até
nem sabemos o motivo pelo qual o seu traçado ficou a norte do limite do de Pedro
Reinel, que supostamente lhe é anterior.
Aceito sem rebuço a fragilidade desta razão, mas não a da seguinte:
para quê guardar um segredo que já o
não era, pois desde 1490 circulava
na Europa o desenho de Henricus Martellus Germanus, que ilustrava
cartograficamente a viagem de Dias e as dos seus predecessores, com rigor e
minúcia? Seriam João II e os seus
conselheiros tão tolos que procurassem esconder o que todos sabiam?
É certo que em 1504 o rei
Manuel I emitiu um mandado determinando que
não houvesse suas navegações das cartas de marear de Guiné
até as ilhas do Príncipe e de S.
Tomé […]; mas também é certo que pouco depois estendeu o limite até o rio do Manicongo, talvez por reconhecer
que a primeira decisão era inútil, por tardia; como o foi a segunda, e pela
mesma razão, e basta o planisfério de Cantino para o mostrar. Quer
dizer, e em resumo: o segredo, se existiu, andava atrasado
em relação à realidade, e isso é o mesmo que o afirmar de valor nulo. Através
da tese
do sigilo, criam-se fantasmas importunos, mas não se vai seja onde for.
Ora bem, todas as coisas de tal espólio que nos interessariam, e não estão mencionadas nas relações de bens
deixados pelo Navegador, provavelmente
nunca se encontraram em suas mãos. Em que se baseou Jaime Cortesão para
afirmar de ciência certa, que
existiram em seu poder em magna
quantidade? Para que lhe servia um
livro de Astrologia? E livros de viagens? Pode supor-se que leu Marco
Polo, e admitir-se, com fundadas dúvidas, que fosse tradutor do livro Segredo
dos Segredos, falsamente atribuído a Aristóteles e absolutamente
alheio a qualquer propósito náutico. O infante personifica o tipo de homem de
acção e não de reflexão erudita. Quanto ao resto, é quase certo que passou
muito bem sem roteiros, cartas, planisférios e outras coisas que, a partir de determinado momento, terão interessado
vivamente navegadores e pilotos». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas
na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega,
Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.
Cortesia de Vega/JDACT