segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «… para quê guardar um segredo que já o não era, pois desde 1490 circulava na Europa o desenho de Henricus Martellus Germanus, que ilustrava cartograficamente a viagem de “Dias” e as dos seus predecessores, com rigor e minúcia? Seriam João II e os seus conselheiros tão tolos que procurassem esconder o que todos sabiam?»

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Ainda o Segredo de Estado
«(…) A origem que apontamos para as cartas portuguesas sobreviventes explica bastante bem que elas se encontrem no estrangeiro, facto que tanto surpreendia Jaime Cortesão e o levou a escrever vitoriosamente: A razão é óbvia: quanto mais secretas mais foram objecto da curiosidade de estranhos! E foram-no, de facto; mas pelas novidades que transmitiam: quando o duque de Este deu 12 ducados de ouro pelo planisfério dito de Cantino, em 1502, não foi com a cavilosa ideia de se preparar para fazer concorrência ao comércio marítimo de Manuel I; foi para saber como era o mundo!
A cartografia merece ainda mais um momento de atenção. Em Portugal ela iniciou-se cerca de 1445, como há poucos anos mostrou Charles Verlinden, a partir de uma leitura atenta da Crónica dos Feitos da Guiné. Repito: essas cartas, com a costa africana traçada como coisa vista por olho, eram desenhadas para uso dos pilotos, e nesse uso se gastaram e perderam. Não vale a pena dizer e repetir que delas copiaram os contornos e topónimos para as suas alguns cartógrafos italianos, porque estes, exímios como eram, podiam muito bem concluir os seus desenhos a partir de relatos e informações avulsas, como aliás fizeram os primeiros cartógrafos portugueses. As cartas desenhadas em Portugal no século XV não se limitam, porém, às duas que Jaime Cortesão contou, embora essas sejam importantíssimas para a sua teoria, facto que se não lembrou de assinalar.
A mais antiga, de Pedro Reinel, datará de c. 1485 (segundo Armando Cortesão): a outra está datada de 1492 e assinada por Jorge Aguiar, que ninguém sabia ter sido um cartógrafo até 1968, data do aparecimento da carta; ambas representam a costa ocidental africana (em parte, sobre o continente) até limites que ficam muito aquém dos reconhecimentos feitos à data dos desenhos. Esta particularidade é absolutamente segura em relação à de Jorge Aguiar: em 1492Bartolomeu Dias torneara há quatro anos a ponta sul da Africa. Eis uma prova que Se não pode recusar! A carta ficou assim em obediência à teoria de segredo dirão, triunfantes, os sigilistas vigilantes. Tenho duas razões para supor o contrário. A primeira é ignoramos de todo a razão ou razões porque Jorge Aguiar terminou ali o seu desenho, e até nem sabemos o motivo pelo qual o seu traçado ficou a norte do limite do de Pedro Reinel, que supostamente lhe é anterior.
Aceito sem rebuço a fragilidade desta razão, mas não a da seguinte: para quê guardar um segredo que já o não era, pois desde 1490 circulava na Europa o desenho de Henricus Martellus Germanus, que ilustrava cartograficamente a viagem de Dias e as dos seus predecessores, com rigor e minúcia? Seriam João II e os seus conselheiros tão tolos que procurassem esconder o que todos sabiam?
É certo que em 1504 o rei Manuel I emitiu um mandado determinando que não houvesse suas navegações das cartas de marear de Guiné
até as ilhas do Príncipe e de S. Tomé […]; mas também é certo que pouco depois estendeu o limite até o rio do Manicongo, talvez por reconhecer que a primeira decisão era inútil, por tardia; como o foi a segunda, e pela mesma razão, e basta o planisfério de Cantino para o mostrar. Quer dizer, e em resumo: o segredo, se existiu, andava atrasado em relação à realidade, e isso é o mesmo que o afirmar de valor nulo. Através da tese do sigilo, criam-se fantasmas importunos, mas não se vai seja onde for.

Ora bem, todas as coisas de tal espólio que nos interessariam, e não estão mencionadas nas relações de bens deixados pelo Navegador, provavelmente nunca se encontraram em suas mãos. Em que se baseou Jaime Cortesão para afirmar de ciência certa, que existiram em seu poder em magna quantidade? Para que lhe servia um livro de Astrologia? E livros de viagens? Pode supor-se que leu Marco Polo, e admitir-se, com fundadas dúvidas, que fosse tradutor do livro Segredo dos Segredos, falsamente atribuído a Aristóteles e absolutamente alheio a qualquer propósito náutico. O infante personifica o tipo de homem de acção e não de reflexão erudita. Quanto ao resto, é quase certo que passou muito bem sem roteiros, cartas, planisférios e outras coisas que, a partir de determinado momento, terão interessado vivamente navegadores e pilotos». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT