Ainda o Segredo de Estado
«(…) A cultura do infante era a de um homem piedoso do seu tempo; e a sua
acção pautava-se por ideais cavaleirescos e religiosos, que tinham bem pouco a
ver com uma cultura vasta e empenhada. Supô-lo embrenhado em complicadas
leituras é desvirtuá-lo, e também esquecer (ou conhecer mal) a que se
limitavam os estudos correntes do seu tempo. As navegações vieram, com os anos,
a mostrar uma outra utilidade da Astronomia, o infante só teve nisso
interferência na medida em que impulsionou navegações; pode-se creditar-lhe sem
rebuço essa glória.
Não vou continuar esta análise com os pretensos erros em que o maquiavélico João II fez cair o genovês
Critóvão Colombo, quanto ao valor do grau terrestre e quanto à aproximação dos
continentes asiático e europeu, quando a distância fosse medida para teste do
segundo. Limitar-me-ei a comentar o seguinte trecho em que Jaime Cortesão
analisa uma frase latina atribuída a Colombo e referente à observação de
latitudes pelo Sol feitas por José Vizinho na Guiné: Os cálculos de latitude mencionados nesta
nota estão ambos errados por carência. Baste-nos por agora considerar que cerca
de 1483 Colombo se oferecera a João
II para descobrir a Índia pelo Ocidente […]; e que o monarca encarregou nesse
ou no ano seguinte, um dos seus astrónomos de observar as latitudes do Sol ao
meio-dia, o que [...] exige o estudo anterior do processo respectivo e, como
consequência, a averiguação do valor do grau terrestre.
Comentários: l.º -
Há, na verdade, erros nas latitudes indicadas, mas normais para um primeiro
ensaio prático da observação da
coordenada; pensar José Vizinho como mistificador às ordens do Príncipe Perfeito parece-me abusivo. 2.º - Não houve necessidade de um estudo deste processo de determinação de
latitudes' porque estava exposto em vários liuros antigos, desde o Tratado do Astrolábio de Messahala,
século IX, até aos Libros del Saber de Astronomia, século XIII. 3.º - A averiguação do comprimento de
1º de meridiano terrestre não é suporte indispensável à determinação de
latitudes, antes o contrário. E já John
Hollywood o intuiu na segunda metade do século XIII!
Mais umas notas dispersas, mas talvez necessárias; a) fala-se sempre do astrolábio de três palmos de diâmetro que Vasco
da Gama mandou montar em terra na baía de Santa Helena para medir a
latitude; mas esquece-se muitas vezes de acrescentar que no mesmo passo de João
de Barros se diz que os pilotos usavam a bordo pequenos astrolábios metálicos;
se Gama desconfiava dos resultados através dos últimos, como se dá a entender,
talvez o fizesse por não ter prática de pilotagem; b) na carta de Henricus Martellus é arbitrária qualquer
leitura de latitudes, pois não está nela desenhada uma escala dessas
coordenadas; c) a suposição de que o
primeiro manuscrito do guia náutico dito de Munique data de 1483, inferiu a Fontoura Costa
de uma análise das tábuas solares nele contidas; d) juntar o Príncipe Perfeito,
Bartolomeu Dias e José Vizinho para, numa acção concertada,
enganarem Colombo, parece-me apenas um razoável tema para um bom livro
policial; e) quanto à escola científica de navegação por alturas dos astros, fundada por João
II, tem tanto de verdade como a escola
de Sagres; se assim não é, que os sigilistas
nos digam os dados que provam a sua existência.
Por último: se me servir de palavras de Jaime Cortesão,
talvez me seja lícito concluir que o segredo de estado funcionou ao
contrário. Transcrevi atrás uma sua frase que repito agora [...] quanto mais secretas [refere-se às cartas] mais foram objecto de curiosidade
interessada de estranhos. E o que se diz das cartas pode-se dizer com certeza
do restante. Será que a estreita política
de sigilo, teve assim o efeito de levar as conquistas náuticas portuguesas
a um mais rápido conhecimento de
todos? Estranho sigilo, então!» In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas
na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega,
Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.
Cortesia de Vega/JDACT