quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O Homem sem Qualidades. Robert Musil. « As cidades, tal como os seres humanos, reconhecem-se pelo ritmo do andar. Esse mesmo viajante, ao abrir os olhos, veria confirmada a sua impressão graças à natureza do movimento das ruas…»

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Onde, coisa estranha, nada acontece
«Estava assinalada uma depressão sobre o Atlântico; deslocava-se de oeste para leste, ao encontro de um anticiclone situado por cima da Rússia, e não manifestava qualquer tendência a evitá-lo, seguindo para o norte. Os isotermos e os isóteros cumpriam as suas obrigações. A relação entre a temperatura do ar e a temperatura média anual, a do mês mais frio e a do mês mais quente, e as suas variações mensais periódicas, era normal. O nascer e o pôr do Sol e da Lua, as fases desta, de Vénus e do anel de Saturno, bem como muitos outros fenómenos importantes, decorriam conformes às previsões dos anuários astronómicos. A percentagem de vapor na atmosfera atingira o máximo e a humidade relativa era fraca. Por outras palavras, se quiséssemos utilizar uma fórmula ultrapassada, mas indiscutivelmente sensata, diríamos que se estava em presença de um belo dia de Agosto do ano de 1913.
Do fundo das ruas estreitas surgiam carros na claridade das praças sem profundidade. A massa escura dos peões divisava-se em filas nebulosas. Nos pontos em que os direitos mais fortes da velocidade cruzavam a pressa flutuante destes, essas filas tornavam-se mais espessas, em seguida escoavam-se rapidamente e não tardavam a retomar, após algumas hesitações, a sua pulsação normal. Uma amálgama de sons indescritíveis criava um ruído agudo, com arestas ora cortantes ora esbatidas da qual sobressaía aqui um bico, ali um estilhaço, que logo se perdiam em notas mais claras. Só por este ruído, embora não se lhe pudesse definir a singularidade, qualquer viajante poderia reconhecer, de olhos fechados, que se encontrava em Viena, capital e residência do Império. As cidades, tal como os seres humanos, reconhecem-se pelo ritmo do andar. Esse mesmo viajante, ao abrir os olhos, veria confirmada a sua impressão graças à natureza do movimento das ruas, muito antes de ter obtido a prova por meio de qualquer pormenor característico. Mas ainda que se tratasse de pura imaginação, que importância teria isso? Só depois da época dos nómadas, quando era preciso conservar na memória o local das pastagens, é que se passou a dar vulto ao sítio onde nos encontramos.
Seria importante esclarecer por que razão, quando falamos de um nariz vermelho, nos contentamos com a afirmação bastante imprecisa de que ele é vermelho, quando seria possível descrevê-lo com precisão até ao milésimo de milímetro por meio dos comprimentos de onda; e por que motivo, em contrapartida, a propósito dessa entidade muito mais complexa que é a cidade onde nos encontramos, queremos sempre saber ao certo de que urbe se trata. É assim que perdemos de vista outras questões mais importantes. Não devemos pois atribuir nenhum significado especial ao nome da cidade, Como todos os grandes centros, este era feito de irregularidade e de mudança, de coisas e de assuntos que se sucedem uns aos outros, recusando-se a caminhar a passo, entrechocando-se: intervalos de silêncio, caminhos de passagem, ampla pulsação rítmica, eterna dissonância, eterno desequilíbrio dos ritmos; numa palavra, uma espécie de líquido em ebulição em qualquer recipiente feito da substância duradoira das casas, das leis, das prescrições e das tradições históricas.
É evidente que as duas personagens que neste momento subiam uma das artérias mais animadas dessa cidade não tinham a mínima consciência disto. Pertenciam sem dúvida a uma classe privilegiada, os seus fatos, o seu aspecto, a sua maneira de falar eram distintos; assim como usavam as iniciais bordadas na roupa interior, sabiam, não exteriormente, mas sim no mais recôndito da sua consciência, quem eram e que o seu lugar se situava, numa capital de Imperio. Admitindo que essas duas personagens se chamavam Arnheim e Hermeline Tuzzi, o facto afigurava-se pouco viável visto que Madame Tuzzi se achava, em Agosto, em Bad-Aussee na companhia do marido e que Arnheim estava ainda em Constantinopla; punha-se pois a questão: quem eram eles?»

In Robert Musil, Der Mann Ohne Eigenschaften, O Homem sem Qualidades, tradução de Mário Braga, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 1952.

MLCT
Cortesia de LBrasil/JDACT