A instituição. Casas de Despacho e de Secreto
«(…) Em 1636 o arquitecto
Mateus Couto desenhou a planta do tribunal e palácio do Santo Ofício (maldito). No seu todo comportava dois corpos,
unidos mas independentes: a leste, a ala dos cárceres com os seus corredores e
pátios e ainda Casas de Despacho e morada do alcaide; a oeste, o outro corpo, o
paço-residência dos inquisidores. No primeiro corpo, encostado ao templo romano
/ açougue, desdobravam-se no rés-do-chão, dois núcleos de cárceres num total de
trinta e cinco com frestas abertas para dois pátios interiores. Ainda nesse
rés-do-chão, se situavam as casas do Fisco, a cozinha e a copa. Subindo ao
primeiro andar, à mão esquerda da entrada, como conjunto autónomo, sucediam-se
as duas Casas do Despacho (a pública e a secreta), o oratório e a Casa do Secreto. Ao lado, quase
num quadrado perfeito sobre as celas do piso térreo, erguiam-se trinta e quatro
cárceres. Num dos ângulos, as casas do alcaide.
Quanto ao segundo corpo ou paço dos inquisidores, ficavam, no piso
térreo, os aposentos do terceiro inquisidor ou inquisidor mais novo com suas
lógeas e quintais. E ainda as casas, quintal e dependências do despenseiro. No
primeiro andar, desdobravam-se os aposentos do primeiro e segundo inquisidores.
Casas de Despacho havia duas, portanto: uma interior, secreta, onde comummente
se ouviam / interrogavam os presos; e outra exterior, pública, onde se
despachavam / julgavam presos de qualidade e de culpa considerada mais leve. A
Casa do Despacho será em lugar tão
resguardado, que fora dela se não possa ouvir cousa alguma do que aí se trata.
As paredes serão forradas com panos de arrás no Inverno, guadramecins no Verão.
De frente para os presos olhava uma imagem de Cristo de vulto ornada com a decência que convém, imagem que se guarda no
museu da cidade.
Sobre o estrado de quatro dedos de altura ficava a mesa de três gavetas
e chaves diferentes onde cada um dos inquisidores guardava os seus papéis,
menos os cadernos que se recolheriam sempre na Casa do Secreto. A mesa
era coberta com um pano de damasco carmesim e por cima coiro negro. De cada
banda ordenavam-se cadeiras de espaldas. Dizia-se vir, chamar à Mesa com letra
grande e não chamar aos inquisidores. O objecto e a sua palavra ocultavam / coisificavam
o poder exercido pelos homens. Haveria ainda na casa do Despacho cadeiras rasas
para presos e testemunhas de qualidade; e banco para preso com pouca qualidade.
os instrumentos e materiais do ofício comportavam um missal com os santos
Evangelhos para dar juramento; uma tábua com a oração do Espírito Santo a quem
se pedia inspirasse as confissões dos presos (o cunhado de Gabriel da costa,
Álvaro Gomes Bravo, pediu audiência
alumiado do Espírito Santo para confessar suas culpas nesta Mesa, e que não o
fizera até agora por seu pecado o enganar; regimentos do Santo Ofício (maldito) e do Fisco; o colectório das bulas
apostólicas e privilégios da Inquisição (maldita);
tinteiros de prata; uma campainha.
Na Casa da Tortura, além dos Santos Evangelhos, havia um conjunto
de aparelhos: primeiro a polé com o balance, a roldana, as cordas e outros
instrumentos; mais tarde o potro, banca de madeira com os seus cabos e arrochos
onde se arrochavam cada braço e cada perna do preso que se apresentava de
coleira. Não faltava o púcaro e o pano para a tortura da água. E navalha para
rapar a planta dos pés. Meirinho e alcaide dos cárceres, além das armas, usavam
nos castigos o açoute e as mordaças. Saindo da Casa do Despacho interior
entrávamos na Casa do Secreto. Aí estavam todos os processos, repertórios, livros e papéis de segredo. E as
janelas que tiver pela parte de fora terão grades de ferro fortes, e esteiras,
de maneira que se não possa entrar por elas. E terá uma só porta para a Casa do
Despacho, bem segura e com fechadura de três chaves de guardas diferentes: uma
chave terá o promotor e as outras duas os dois notários mais antigos. Mas a
Porta do Secreto só se abrirá na presença de um inquisidor.
A planta de Mateus do Couto seguia, para a Inquisição (maldita) de Évora, as indicações do Regimento
de 1640. Assim a sua Casa do Secreto abria por uma só porta
para a Casa do Despacho interior e só para ela. Esta Casa do Despacho
comunicava com o Oratório e a Casa do Despacho pública mediante uma saleta
interior onde ficava o porteiro de dentro.
Aliás estas Casas, do Despacho, do Secreto e Oratório, constituíam um
conjunto independente, embora comunicante, através de um corredor, com o mundo
de suor, urina e fezes das celas interiores. No Secreto havia duas mesas
com os artefactos necessários tinteiros,
tesouras, canivetes, areia, penas, tinta, linhas, agulhas, obrea, e papel em
abundância. E ainda os papéis de segredo de cada inquisidor; os livros de
denúncias; livros de processos; livros dos autos-da-fé realizados em Évora e
nas outras Inquisições; o livro de todas as terras que pertenciam à jurisdição
de Évora com os nomes dos comissários, escrivães e familiares que nelas se criaram;
os livros de receita e despesa, etc., etc.
Ficavam ainda aí arcas encoiradas para levar ao auto-da-fé os processos
despachados ou os livros para queimar; e uma arca com três chaves em que se
recolhia todo o dinheiro que por qualquer
via tocar ao Santo Ofício.
NOTA: No Regimento de 1613,
promulgado pelo bispo inquisidor-geral Pedro Castilho já a câmara do secreto avultava como fortaleza dos segredos: Regimento
do Sancto Officio da Inquisiçam dos Reynos de Portugal. O exemplar da
Biblioteca Nacional, Res. 238 A pertenceu
ao ex-inquisidor de Évora e membro do Conselho Geral doutor Gaspar Pereira que o
ofereceu ao doutor Bernardo de Ataíde quando este tomou posse, a 20 de Agosto de
1623, do lugar de deputado da
Inquisição (maldita) de Lisboa».
In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668,
volume 1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do
Livro e da Leitura, 1987.
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