O Tráfico de Escravos na Época
Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«(…) Em 1294, o papa
Celestino V nada opunha ao facto de um cristão livre se vender voluntariamente
como escravo. Inclusive, condenava à escravidão todo o cristão que auxiliasse
os muçulmanos, fornecendo-lhes armas. Um século depois, o florentino Sacchetti,
nos seus Sermoni Evangelisti, admitia sem restrições a escravidão
temporária ou vitalícia e a própria venda do homem cristão, se assim o
determinasse a sua vontade. No século XIII, na Península Ibérica, As Sele Partidas de Afonso X previam
claramente várias situações de sujeição. Todo o homem livre tinha a possibilidade
de se vender como escravo, ou de se deixar vender por outrém, desde que ele
próprio recebesse uma parte do seu preço e o comprador ignorasse a sua
qualidade de homem livre. Um pai podia vender o filho, caso necessitasse de
dinheiro para viver ou pagar dívidas. Podia, no entanto, reavê-lo logo que
tivesse dinheiro suficiente para o resgatar. Determinavam também que a condição
servil era transmitida pela mãe, donde, os filhos de mãe serva e pai livre
seriam servos; caso contrário, os filhos seriam livres. Mas, de uniões entre homens
e mulheres livres também podiam resultar filhos servos. Encontravam-se, nesta
situação, os filhos dos clérigos com ordens sagradas, que a lei reputava de
servos da Igreja. Também aqui se determinava que os cristãos podiam ser
condenados à servidão, caso fornecessem armas aos inimigos da Igreja ou os
auxiliassem de qualquer outra forma. Quanto aos infiéis, prisioneiros de guerra,
esta legislação considerava que só-podiam ser tomados como servos aqueles que
recusassem receber a conversão.
Para além dos casos que determinavam ou não a perda da liberdade, a lei
precisava ainda a diferença entre a condição de servo e a de criado. Estes eram
homens livres; àqueles o senhor podia fazer-lhes o que quisesse, procurando evitar
matá-los ou feri-los, de acordo com os preceitos da razão natural. Caso fossem
sujeitos a maus tratos, os servos tinham a possibilidade de apresentar queixa
contra os donos. Mas não era este facto que fazia com que a servidão deixasse
de ser a condição mais vil e desprezível entre os homens. E isto porque tornava
a mais nobre e livre criatura
propriedade de outrém, que dele fazia o que quisesse como se de outro bem
qualquer se tratasse. Quem caísse na servidão não só perdia o poder de fazer o
que queria, mas também a posse da sua própria pessoa. O servo não surge aqui
como ,um homem obrigado a desempenhar alguns serviços ou a pagar certos
tributos, mas sim na condição de quem por força do direito pertence a outro,
que se aproveita do seu trabalho e o considera mais um dos seus haveres.
É de notar que nesta época em vez de escravo e escravidão se
utilizava, frequentemente, a terminologia servo
e servidão. No ocidente cristão medieval,
os escravos eram vulgarmente designados pelos nomes herdados da tradição antiga
que, indistintamente, eram também aplicados aos servos. Por essa razão,
aparecem os vocábulos servus, ancilla e, por vezes, mancipia ou homo, como designativos de escravos. Mais tarde, com a captura e
compra de grande número de estrangeiros, os nomes relativos à origem, raça ou a
qualquer outra característica impõem-se, acabando por se tornar termos designativos
dos escravos com a mesma proveniência. Surgem então referências a sarracenos, mouros, negros, etíopes, cativos e esclavos. Foi
esta última designação, referente aos cativos oriundos da Esclavónia, feitos
prisioneiros por Otão, o Grande, rei
da Germânia e imperador do ocidente no século X, que deu origem à palavra escravo que se impôs e propagou em todo
o ocidente. A utilização ambígua dos vocábulos vai, no entanto, permanecer até bastante
tarde. Gomes Eanes de Zurara, por exemplo, ao escrever a Crónica
do Descobrimento e Conquista de Guiné, ainda não utiliza a designação
de escravo, mas sim de servo, mouro, mouro-negro, cativo e, por vezes, até almas, como acontece quando põe na boca
de Nuno Tristão a referência às primeiras duas almas que Antão Gonçalves aprisionou. Segundo Pedro d'Azevedo,
o primeiro documento em que aparece referido o vocábulo escravo data de 1462. É
a carta que autoriza Diogo Valarinho a levar para Castela, isentos de
impostos, os escravos que obtivesse para além do cabo Verde. O autor crê, no
entanto, na possibilidade de o termo ser conhecido há mais tempo, sem contudo
ser anterior à época dos Descobrimentos.
Durante a Reconquista Cristã,
o confronto entre cristãos e muçulmanos alimentou um activo comércio de
escravos na Península Ibérica. Quer as incursões por terra, quer as marítimas,
estas últimas provenientes sobretudo de Córdova ou do norte de África,
penetravam em território cristão e voltavam ricas em despojos e escravos.
Sabe-se pela Chronica Gothorum que, no século XI, muitos cristãos foram
feitos cativos pelos árabes na tomada e destruição dos castelos de Miranda,
de Santa Eulália, de Leiria e de Coruche. Por sua vez, em 1057, depois das conquistas de Lamego,
Seia e Viseu, Fernando Magno fez a partilha dos escravos mouros que haviam ficado
cativos; e de 1087 conhece-se a
doação de uma moura para resgate, por troca dum cristão em posse dos muçulmanos.
Mais tarde, em 1141, Dordia
Ramires doou um mouro, dos da sua criação, ao mosteiro da Pendurada. Nos
anos de 1200, 1227, 1254 e 1267 aparecem doações de escravos,
respectivamente, em Tomar, Fagilde, Tarouca e Salzedas. Em 1368, uma freira do convento de Chelas,
comprou por 150 libras uma moura de pele branca que fora feita cativa por
aragoneses, depois vendida para Sevilha e, finalmente, pârâ Lisboa. Relativamente
a esta escrava, Pedro d'Azevedo anotou ainda que fora adquirida no mercado
de escravos da Rua Nova de Lisboa, existente desde meados do século XIV
e onde se comerciavam, inclusive, escravos provenientes do mercado de Sevilha».
In
Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na
Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995,
ISBN 972-8047-75-4.
Cortesia de Colibri/JDACT