sábado, 14 de setembro de 2013

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Apelou simplesmente para a moderação dos senhores, incitando-os a considerá-los semelhantes, e para a obediência dos escravos. As relações entre uns e outros deviam ser de amor recíproco»

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O Tráfico de Escravos na Época Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«Quando se diz que a escravatura foi inaugurada nos tempos modernos ou restaurada dos antigos pelos portugueses, contradiz-se a realidade histórica. Os negros de Antão Gonçalves foram os primeiros que, em 1441, vieram em navio português, da costa ocidental de África para Portugal, mas, ao contrário do que muitos autores erradamente parecem julgar, não foram os primeiros escravos africanos que entraram na Europa. Este fenómeno social era já sobejamente conhecido, não só no velho continente, mas também nas diversas regiões africanas e asiáticas. O próprio tráfico não era ignorado, efectuando-se com indivíduos das mais variadas origens, raças e crenças religiosas.
Tráfico e escravidão, como práticas constantes, atravessaram a História da Humanidade sempre aliadas a razões que as sustentavam sem objecções, variando o seu grau de intensidade ou de sujeição, consoante as épocas e os lugares. Persistiram em todas as sociedades, incluindo a do final do Império Romano do Ocidente, quando parecia existir uma certa tendência para um movimento de libertação do homem, de transformação gradual do escravo em servo e de reconhecimento da igualdade natural dos homens. A servidão assumiu-se nessa altura como uma adaptação da escravatura antiga às exigências da nova moral cristã e às necessidades de uma sociedade privada de meios técnicos, onde o trabalho humano continuava a ser factor fundamental de produção, mas em que o número de escravos, resultante na sua grande maioria das guerras, tinha decrescido devido ao fim das conquistas. Esta diminuição de mão-de-obra, a decadência da agricultura e os pesados impostos que recaiam sobre as terras incultas levaram os proprietários a substituir a produção directa, feita à base da mão-de-obra escrava, pela produção indirecta, através do parcelamento dos latifúndios e da transformação do escravo numa espécie de colono adscrito, servi casati, obrigado à exploração agrícola dessas parcelas e ao pagamento de uma renda fixa. Estes indivíduos, se bem que obrigatoriamente presos à terra, gozavam já de certas regalias.
Mas nem o novo condicionalismo sócio-económico, nem o carácter progressista da filosofia estóica sobre a igualdade natural de todos os homens e a dignidade dos escravos, nem os princípios da moral cristã foram suficientes para impor, no plano das consciências e das instituições, os princípios defendidos teoricamente no fim do Império Romano. Houve apenas um melhoramento significativo das condições de vida do escravo e a redução do seu número. A escravatura limitava-se agora a indivíduos de outras crenças e raças, adquiridos nos mercados estrangeiros. A própria Igreja, que muito contribuiu para estas alterações qualitativas e quantitativas, nunca repudiou formalmente a escravidão, nem mesmo renunciou ao serviço desta mão-de-obra. Apelou simplesmente para a moderação dos senhores, incitando-os a considerá-los semelhantes, e para a obediência dos escravos. As relações entre uns e outros deviam ser de amor recíproco. Reconheceu-lhes o direito ao casamento, deu-lhes asilo quando fugiam de maus tratos, sepultou-os ao lado dos livres e, com frequência, oferecia a Deus a sua libertação como sufrágio pela salvação das almas.
Todavia, apesar destas modificações que pareciam revelar uma tendência antiescravista, os escravos continuaram a existir, mesmo em regiões onde era grande a influência da Igreja. Mais do que abolir a escravatura, a Igreja procurou transformá-la, minorando os seus inconvenientes. Como refere Joseph Hoffner no livro Colonização e Evangelho, a mensagem cristã ao aconselhar os escravos a obedecerem aos seus donos com temor e tremor, de coração sincero, como ao Senhor e a estes a proceder do mesmo modo em relação a eles, especificando que cada um, escravo ou livre, receberia a recompensa do bem que praticasse, transformou a escravidão sem sequer lhe ter tocado. Naquela época, talvez fosse mesmo a única atitude possível. No concílio de Granges, no ano de 324, a Igreja definiu claramente a sua posição ao pôr sob pena de excomunhão, todo aquele que induzisse um escravo a fugir, a desprezar o seu senhor ou a não o servir respeitosamente e de boa vontade.
Tal como no Império Romano, as restantes civilizações antigas do Mediterrâneo não prescindiram da escravidão, tendo no mundo bárbaro a sua fonte de energia. Era também uma tradição dos povos germânicos, nos finais do século IV, quando invadiram a Península Ibérica e difundiram os seus costumes. Os árabes praticavam-na igualmente desde há muitos. A Idade Média conservou-a como instituição económica e jurídica, se bem que atenuada e, sobretudo, restrita ao mundo mediterrânico. O facto de nesta altura a população escrava se ter limitado, fundamentalmente, aos contingentes obtidos através das relações comerciais com os muçulmanos e às guerras ou actividades de corso entre cristãos e infiéis, não significa que a escravidão não se tenha desenvolvido nos países mediterrânicos. Sofreu mesmo a partir dos séculos XIII a XV, um aumento extraordinário. No fim da Idade Média e principalmente com a colonização moderna, escravatura e tráfico tomaram proporções desmedidas com o arranque e florescimento do capitalismo comercial, acentuando-se a utilização da mão-de-obra escrava». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT