O Tráfico de Escravos na Época
Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«Quando se diz que a escravatura foi inaugurada nos tempos modernos ou restaurada
dos antigos pelos portugueses, contradiz-se a realidade histórica. Os negros de
Antão Gonçalves foram os primeiros que, em 1441, vieram em navio português, da costa ocidental de África para
Portugal, mas, ao contrário do que muitos autores erradamente parecem julgar,
não foram os primeiros escravos africanos que entraram na Europa. Este fenómeno
social era já sobejamente conhecido, não só no velho continente, mas também nas
diversas regiões africanas e asiáticas. O próprio tráfico não era ignorado,
efectuando-se com indivíduos das mais variadas origens, raças e crenças
religiosas.
Tráfico e escravidão, como práticas constantes, atravessaram a História
da Humanidade sempre aliadas a razões que as sustentavam sem objecções, variando
o seu grau de intensidade ou de sujeição, consoante as épocas e os lugares.
Persistiram em todas as sociedades, incluindo a do final do Império Romano do
Ocidente, quando parecia existir uma certa tendência para um movimento de
libertação do homem, de transformação gradual do escravo em servo e de
reconhecimento da igualdade natural dos homens. A servidão assumiu-se nessa
altura como uma adaptação da escravatura antiga às exigências da nova moral
cristã e às necessidades de uma sociedade privada de meios técnicos, onde o
trabalho humano continuava a ser factor fundamental de produção, mas em que o
número de escravos, resultante na sua grande maioria das guerras, tinha decrescido
devido ao fim das conquistas. Esta diminuição de mão-de-obra, a decadência da
agricultura e os pesados impostos que recaiam sobre as terras incultas levaram
os proprietários a substituir a produção directa, feita à base da mão-de-obra
escrava, pela produção indirecta, através do parcelamento dos latifúndios e da
transformação do escravo numa espécie de colono adscrito, servi casati, obrigado à exploração agrícola dessas parcelas e ao
pagamento de uma renda fixa. Estes indivíduos, se bem que obrigatoriamente
presos à terra, gozavam já de certas regalias.
Mas nem o novo condicionalismo sócio-económico, nem o carácter progressista
da filosofia estóica sobre a igualdade natural de todos os homens e a dignidade
dos escravos, nem os princípios da moral cristã foram suficientes para impor,
no plano das consciências e das instituições, os princípios defendidos
teoricamente no fim do Império Romano. Houve apenas um melhoramento
significativo das condições de vida do escravo e a redução do seu número. A
escravatura limitava-se agora a indivíduos de outras crenças e raças, adquiridos
nos mercados estrangeiros. A própria Igreja, que muito contribuiu para estas
alterações qualitativas e quantitativas, nunca repudiou formalmente a
escravidão, nem mesmo renunciou ao serviço desta mão-de-obra. Apelou
simplesmente para a moderação dos senhores, incitando-os a considerá-los
semelhantes, e para a obediência dos escravos. As relações entre uns e outros
deviam ser de amor recíproco. Reconheceu-lhes o direito ao casamento, deu-lhes
asilo quando fugiam de maus tratos, sepultou-os ao lado dos livres e, com
frequência, oferecia a Deus a sua libertação como sufrágio pela salvação das
almas.
Todavia, apesar destas modificações que pareciam revelar uma tendência antiescravista,
os escravos continuaram a existir, mesmo em regiões onde era grande a influência
da Igreja. Mais do que abolir a escravatura, a Igreja procurou transformá-la,
minorando os seus inconvenientes. Como refere Joseph Hoffner no livro Colonização
e Evangelho, a mensagem cristã ao aconselhar os escravos a obedecerem
aos seus donos com temor e tremor, de
coração sincero, como ao Senhor e a estes a proceder do mesmo modo em relação a eles, especificando que cada
um, escravo ou livre, receberia a recompensa do bem que praticasse, transformou
a escravidão sem sequer lhe ter tocado. Naquela época, talvez fosse mesmo a única
atitude possível. No concílio de Granges,
no ano de 324, a Igreja definiu
claramente a sua posição ao pôr sob pena de excomunhão, todo aquele que
induzisse um escravo a fugir, a desprezar o seu senhor ou a não o servir
respeitosamente e de boa vontade.
Tal como no Império Romano, as restantes civilizações antigas do Mediterrâneo
não prescindiram da escravidão, tendo no mundo
bárbaro a sua fonte de energia. Era também uma tradição dos povos
germânicos, nos finais do século IV, quando invadiram a Península Ibérica e
difundiram os seus costumes. Os árabes praticavam-na igualmente desde há
muitos. A Idade Média conservou-a como instituição económica e jurídica, se bem
que atenuada e, sobretudo, restrita ao mundo mediterrânico. O facto de nesta
altura a população escrava se ter limitado, fundamentalmente, aos contingentes
obtidos através das relações comerciais com os muçulmanos e às guerras ou
actividades de corso entre cristãos e infiéis, não significa que a escravidão
não se tenha desenvolvido nos países mediterrânicos. Sofreu mesmo a partir dos
séculos XIII a XV, um aumento extraordinário. No fim da Idade Média e
principalmente com a colonização moderna, escravatura e tráfico tomaram
proporções desmedidas com o arranque e florescimento do capitalismo comercial,
acentuando-se a utilização da mão-de-obra escrava». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem
ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras
de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
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