sábado, 14 de setembro de 2013

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Quem caísse na servidão não só perdia o poder de fazer o que queria, mas também a posse da sua própria pessoa. O servo não surge aqui como um homem obrigado, mas sim na condição de quem por força do direito pertence a outro»

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O Tráfico de Escravos na Época Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«(…) Em 1294, o papa Celestino V nada opunha ao facto de um cristão livre se vender voluntariamente como escravo. Inclusive, condenava à escravidão todo o cristão que auxiliasse os muçulmanos, fornecendo-lhes armas. Um século depois, o florentino Sacchetti, nos seus Sermoni Evangelisti, admitia sem restrições a escravidão temporária ou vitalícia e a própria venda do homem cristão, se assim o determinasse a sua vontade. No século XIII, na Península Ibérica, As Sele Partidas de Afonso X previam claramente várias situações de sujeição. Todo o homem livre tinha a possibilidade de se vender como escravo, ou de se deixar vender por outrém, desde que ele próprio recebesse uma parte do seu preço e o comprador ignorasse a sua qualidade de homem livre. Um pai podia vender o filho, caso necessitasse de dinheiro para viver ou pagar dívidas. Podia, no entanto, reavê-lo logo que tivesse dinheiro suficiente para o resgatar. Determinavam também que a condição servil era transmitida pela mãe, donde, os filhos de mãe serva e pai livre seriam servos; caso contrário, os filhos seriam livres. Mas, de uniões entre homens e mulheres livres também podiam resultar filhos servos. Encontravam-se, nesta situação, os filhos dos clérigos com ordens sagradas, que a lei reputava de servos da Igreja. Também aqui se determinava que os cristãos podiam ser condenados à servidão, caso fornecessem armas aos inimigos da Igreja ou os auxiliassem de qualquer outra forma. Quanto aos infiéis, prisioneiros de guerra, esta legislação considerava que só-podiam ser tomados como servos aqueles que recusassem receber a conversão.
Para além dos casos que determinavam ou não a perda da liberdade, a lei precisava ainda a diferença entre a condição de servo e a de criado. Estes eram homens livres; àqueles o senhor podia fazer-lhes o que quisesse, procurando evitar matá-los ou feri-los, de acordo com os preceitos da razão natural. Caso fossem sujeitos a maus tratos, os servos tinham a possibilidade de apresentar queixa contra os donos. Mas não era este facto que fazia com que a servidão deixasse de ser a condição mais vil e desprezível entre os homens. E isto porque tornava a mais nobre e livre criatura propriedade de outrém, que dele fazia o que quisesse como se de outro bem qualquer se tratasse. Quem caísse na servidão não só perdia o poder de fazer o que queria, mas também a posse da sua própria pessoa. O servo não surge aqui como ,um homem obrigado a desempenhar alguns serviços ou a pagar certos tributos, mas sim na condição de quem por força do direito pertence a outro, que se aproveita do seu trabalho e o considera mais um dos seus haveres.
É de notar que nesta época em vez de escravo e escravidão se utilizava, frequentemente, a terminologia servo e servidão. No ocidente cristão medieval, os escravos eram vulgarmente designados pelos nomes herdados da tradição antiga que, indistintamente, eram também aplicados aos servos. Por essa razão, aparecem os vocábulos servus, ancilla e, por vezes, mancipia ou homo, como designativos de escravos. Mais tarde, com a captura e compra de grande número de estrangeiros, os nomes relativos à origem, raça ou a qualquer outra característica impõem-se, acabando por se tornar termos designativos dos escravos com a mesma proveniência. Surgem então referências a sarracenos, mouros, negros, etíopes, cativos e esclavos. Foi esta última designação, referente aos cativos oriundos da Esclavónia, feitos prisioneiros por Otão, o Grande, rei da Germânia e imperador do ocidente no século X, que deu origem à palavra escravo que se impôs e propagou em todo o ocidente. A utilização ambígua dos vocábulos vai, no entanto, permanecer até bastante tarde. Gomes Eanes de Zurara, por exemplo, ao escrever a Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné, ainda não utiliza a designação de escravo, mas sim de servo, mouro, mouro-negro, cativo e, por vezes, até almas, como acontece quando põe na boca de Nuno Tristão a referência às primeiras duas almas que Antão Gonçalves aprisionou. Segundo Pedro d'Azevedo, o primeiro documento em que aparece referido o vocábulo escravo data de 1462. É a carta que autoriza Diogo Valarinho a levar para Castela, isentos de impostos, os escravos que obtivesse para além do cabo Verde. O autor crê, no entanto, na possibilidade de o termo ser conhecido há mais tempo, sem contudo ser anterior à época dos Descobrimentos.
Durante a Reconquista Cristã, o confronto entre cristãos e muçulmanos alimentou um activo comércio de escravos na Península Ibérica. Quer as incursões por terra, quer as marítimas, estas últimas provenientes sobretudo de Córdova ou do norte de África, penetravam em território cristão e voltavam ricas em despojos e escravos. Sabe-se pela Chronica Gothorum que, no século XI, muitos cristãos foram feitos cativos pelos árabes na tomada e destruição dos castelos de Miranda, de Santa Eulália, de Leiria e de Coruche. Por sua vez, em 1057, depois das conquistas de Lamego, Seia e Viseu, Fernando Magno fez a partilha dos escravos mouros que haviam ficado cativos; e de 1087 conhece-se a doação de uma moura para resgate, por troca dum cristão em posse dos muçulmanos. Mais tarde, em 1141, Dordia Ramires doou um mouro, dos da sua criação, ao mosteiro da Pendurada. Nos anos de 1200, 1227, 1254 e 1267 aparecem doações de escravos, respectivamente, em Tomar, Fagilde, Tarouca e Salzedas. Em 1368, uma freira do convento de Chelas, comprou por 150 libras uma moura de pele branca que fora feita cativa por aragoneses, depois vendida para Sevilha e, finalmente, pârâ Lisboa. Relativamente a esta escrava, Pedro d'Azevedo anotou ainda que fora adquirida no mercado de escravos da Rua Nova de Lisboa, existente desde meados do século XIV e onde se comerciavam, inclusive, escravos provenientes do mercado de Sevilha». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT