A Divisão da História de Portugal em períodos
«(…) Se a forma como nasceu e cresceu a historiografia portuguesa
explica a adopção de tal quadro por dinastias e reinados, já é de espantar que
este tivesse sobrevivido à crítica lúcida e impiedosa que dele fez Herculano
nas Cartas
sobre a história de Portugal, em 1842,
na esteira de igual demolição, para a história da França, levada a cabo por Thierry.
O catálogo das famílias reais é uma cousa, a existência colectiva de um povo,
outra inteiramente diferente. Necessidade de estabelecer uma cronologia rigorosa,
dos factos políticos e da vida dos homens públicos, há evidentemente; mas ela
não nos dá sequer a biografia desses homens, que, a tal reduzida, representa
apenas abstracções, o homem não pode ser separado do seu século, e sobre a sua existência
individual tem influência imensa (Herculano chega a escrever: absoluta) a existência complexa
dos muitos milhares, a que se chama nação; É
por isso que, além de ser absurdo em tese geral resumir e representar a
sociedade nos indivíduos, tal absurdo se torna monstruoso, quando o tomamos como
medida das fases da sociedade. Que a folhinha de algibeira fique nas
divisões dinásticas; mas isto não é ciência, e a história é ciência. Pouco
bastará para nos persuadirmos de que a biografia das famílias ou dos indivíduos
nunca pode caracterizar qualquer época; antes, pelo contrário, a história dos
costumes, das instituições, das ideias, é que há-de caracterizar os indivíduos
ainda quando quisermos estudar exclusivamente a vida destes, em vez de estudar
a vida do grande indivíduo moral, chamado povo ou nação.
O critério é, pois, distribuir as
épocas cronológicas pelas transformações essenciais da sociedade. O
decisivo está dito, e primorosamente, inexcedivelmente dito. A aplicação do
critério feita pelo próprio Herculano não se reveste, é evidente, da mesma
importância, e foi aliás influenciada por outros factores, sobretudo de
apreciação moral e política. É sabido que Herculano coloca a cesura
fundamental da história portuguesa em fins do século XV, quando se teria completado
a virilidade moral da nação portuguesa; o primeiro ciclo, a Idade Média,
é aquele em que a nação se constitui; o segundo é o da rápida decadência como
corpo social, o renascimento e todo o absolutismo; o século XIX abre
novo ciclo, o terceiro, em parte regresso ao primeiro, porquanto as revoluções
políticas do seu tempo seriam um protesto contra o renascimento, uma rejeição
da unidade total, a renovação das tentativas para organizar a variedade. A
nossa história começa com a separação do reino leonês, a Lusitânia, os domínios romano,
visigótico, muçulmano, os primórdios da Reconquista pertencem à história geral
da Península, e não especificamente à nossa, a família portuguesa conta apenas seis séculos de existência, é
plebeia entre as mais plebeias nações. Sendo assim, dá a impressão de
que 1640, renovando essa
independência, deveria constituir outra cesura; todavia não; porque a revolução de 1640 traz à sociedade portuguesa levíssimas mudanças no seu modo de
existir. A intrusão dos Filipes também não merece, pela mesma razão,
ser como tal considerada. Corte, mau grado secundário em relação ao fundamental
do tempo do rei João II, opera-se, sim, ao entrar no último quartel do século XIII,
não por subir o rei Dinis I ao trono, mas porque, como já pressentira António
Brandão aí se acaba realmente o
primeiro período da nossa história.
Ao critério definido por Herculano chamaríamos hoje
estruturalista, pois para este historiador os
acontecimentos que caracterizam a generalidade de uma época, e que reunidos
constituem a síntese dela, têm sempre origem na índole íntima da sociedade, na
natureza da sua organização. Tal concepção coadunava-se perfeitamente com a
sociedade nascida da Revolução francesa e da Revolução industrial,
e por isso admira, à primeira vista, que não se impusesse desde logo irresistivelmente
à historiografia e ao ensino em Portugal». In Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Sobre a
História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 1968.
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