Marânus. Marânus
e Eleonor
[…]
II
Marânus e a Pastora
E Marânus, tão triste, empalidece:
Quem sabe se tu és, ó criatura,
um espectro mais próximo e
visível?
Uma sombra mais densa e mais
escura?
Quiméricos desenhos fabulosos
serão as tuas formas virginais?
E esse teu lindo rosto florescido,
como a terra, em Abril, não será mais
do que uma branda névoa enganadora
que, por minha virtude, cristaliza
nessa tua aparência, que esta aurora
coroa de áureas rosas?
E a Donzela,
confusa, imaginando que Marânus
o juízo perdera, de repente,
assim lhe diz, tomada de piedade:
Como te vejo pálido e tremente!
Sofrerás, por acaso? Descobriu
alguma nova dor teu coração?
Trazes contigo o assombro de quem
viu
milagre ou maravilha! Andas
possesso
da tua própria alma a delirar?...
Não haver quem te arranque das
entranhas
essa noite que turva o teu olhar,
esse íntimo demónio tenebroso!
Oh, que estranhas palavras! Quem és tu?
Lhe perguntou Marânus. - Logo vi.
Que eras pura ilusão dos meus sentidos.
Mas também que me importa, se eu vivi
essa ilusão? Se tudo quanto vivo
se converte em humana realidade,
fica a ser deste mundo, como eu sou.
E, num sorriso etéreo de bondade,
a solitária e idílica Pastora,
que misterioso espírito animava,
talvez o duma Deusa que, em seu corpo,
suas divinas formas revelava:
Caminhante nocturno, erma figura,
gerada no silêncio e na tristeza…
Ó luso peregrino da Aventura,
atrai-me a tua voz enlouquecida!
O teu próprio delírio me seduz...
Essa altitude, anímica e
nevoenta,
que toca nas estrelas, onde a
luz,
para voar, voar, se veste de asas.
Há nas tuas palavras um abismo.
Ouvindo-as, logo sinto uma vertigem,
e, em sobressalto, chora e se lastima
o que em mim é vedado, oculto e virgem.
A parte indefinida do meu ser
ama a sombra espectral em que desvairas...
E nem, ao menos, posso compreender
esta força amorosa que me leva
para a tua loucura!
Desconheces
se eu existo, se vivo, e confundiste
a carne palpitante, que me acende
os ossos de desejo, com a triste
irrealidade escura dos fantasmas.
Já não me avisto a mim! Eis o motivo
por que te adoro tanto! E quem sou eu?
Alguma deusa? Espectro fugitivo?
Mas eu existo e sou! Sou eu!
Repara
no sangue do meu pulso que
lateja!
Não vês o meu olhar beijar teus
olhos?
Não vês a minha sombra como beija
a sombra do teu corpo?
Dizes bem.
Fica longe de nós todo esse idílio.
É um idílio de sombras, muito além,
nas distantes florestas.
E, inclinando
a alva fronte, a Pastora emudeceu.
[…]
In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT