«(…) Dizem os cristãos que Deus proclamou: Eu sou o Pensamento que habita a Luz, aquele que já existia antes de qualquer
outra coisa; sou activo em cada criatura. Sou o invisível e o Uno no todo... Diz
o Alcorão: Adorai o vosso Senhor, que vos criou, assim como os vossos
antepassados; talvez assim sejais piedosos. Adorai o vosso Senhor que vos deu a
Terra por leito e o céu por casa e fez descer água do céu e brotar, pela sua
medição, frutos que vos servem de alimento. Não crieis rivais de Deus por vossa
vontade. Foi Deus quem criou para vós o que há na Terra. Depois disso voltou-se
para o céu e dispô-lo em sete céus.
Porque quis Deus ficar entre
nós? Sente-se incapaz?
Dizem, na Isa, os Upanixades que
formam a sabedoria espiritual dos Hindus, que reforçam Deus em outra
imaterialidade que é o Brama, o Espírito: A
face da verdade mantém-se escondida por trás de um círculo de ouro. Desvenda-a
ó deus da luz para que eu, que amo o verdadeiro, a possa ver. O Sol dador da
vida, produto do Senhor da Criação, profeta solitário dos céus... Andamos
todos, perdendo tempo, em busca do oculto, quando o que está à vista tanto nos
dói... A face da verdade? O
que será, como será a face da verdade?
A terra de Israel ó santificada pela sua relação com Deus. O produto de
Deus é santificado pelo homem que trabalha sob a ordem de Deus, e através das
designações e das separações verbais das diferentes oferendas. Mas há, ou virá a haver, uma terra de
Israel? E porque é que então Deus nos deixa em masmorras e penitências? Todos somos semelhantes, todos tão
diferentes. Repare-se se o dhikir
muçulmano não é uma prece nossa ou de cristão, desses que repetem o monologista
que se limita à reprodução contínua do
nome de Deus?
No decorrer do tempo, e com algumas excepções, a opressão exercida pela
vida leva a desacreditar, ou a que, pelo menos, todos nós, os das muitas
religiões, nos tornemos parecidos, iguais nas crenças e descrenças. E se um
deus quisesse que fôssemos todos crentes dele, ou apenas crentes, teria uma
força que não tem... Na humidade intensa da masmorra, Josef secava sem valimento
que o melhorasse. Deus - Deus?
- Chamou-o uma noute e levou-o, pois faltaram a Josef as forças para
erguer o rosto das águas da maré cheia e nenhum outro condenado o sentiu a
ir-se. Deus chamou-o? Ou terá Josef
partido sozinho, pagando o crime único de ser homem num tempo incerto? Por acaso, na manhã seguinte, até
vieram libertá-lo para o baptizarem, mas ele não foi que já não era necessário...
Roía as unhas; nauseado, suava. A culpa era dele. Sim. A culpa era
dele. Dava ouvidos a quem não merecia favores da Terra ou a mais altruísta
clemência do céu.
- Deus Todo-Poderoso! - persignava-se. - Maldito cheirete! Pior. Mais
do que dar ouvidos a conselhos blasfemos, ainda os pagava com boas moedas de
ouro, em vez de cobrar, como os seus antepassados usavam a legítima juderega. Que a judenga valia
trinta dinheiros bem contados e era devida à coroa. Se aquele povo de perdidos havia
vendido Jesus por essa mesma quantia que dúvidas teria um seu representante em
caçoar com um rei cristão de pernas arrebentadas por caminhos de esforço e a cabeça
transtornada, a zunir com fantasmas, cada vez mais a zunir com espectros de
vida inteira?!!! - Pai Altíssimo, que fedor.
Irra!
Na solidão da sua câmara sombreada, maldizendo as janelas cerradas e o
bafo do Estio que delas emanava, mais as moscas que o não largavam, el-rei
lamentava-se. Lamentava-se por dar ouvidos a Zacuto. A esse que, aliás,
agora se chamava Nuno Coelho para acatar as novas leis. Zacuto...
O físico, o sábio, o negociante, maldito e mordaz avaro, cristão-novo
amaldiçoado. Pior do que tudo e por desonra de apetites alheios, pai da mulher
com os mais belos olhos e o corpo mais tenro de todos os corpos de todos os
reinos conhecidos e de terras recém-descobertas. Irra! - Mãe Santíssima, que cheirete!» In Alexandre Honrado, Os
Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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