domingo, 15 de setembro de 2013

Fragmentos de uma Composição Medieval. Imprensa Universitária. José Mattoso. «… a diferença cultural em diferença social, em luta de classes, e identificar-se-ia o verdadeiro espírito nacional com as tradições dos povos meridionais, subjugados pelos clérigos e cavaleiros do Norte»

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Portugal. História e Identidade
Os Moçárabes
«O problema da influência moçárabe nas origens de Portugal foi posto pela primeira vez em termos modernos por Alexandre Herculano. Reduzindo a sua ideia aos elementos essenciais, pode-se dizer que ele considerou os moçárabes a camada étnica que verdadeiramente assegurou a continuidade cultural entre a época romana e a Idade Média cristã. Teriam constituído como que o elemento permanente, preservador das instituições municipais, do Direito Romano e da língua e da mentalidade latinas. Para o mesmo autor, a islamização teria sido superficial. Representava uma cultura estranha à Península e que se haveria dissipado com facilidade depois da Reconquista.
É bastante instrutivo aproximar esta tese da dos autores castelhanistas, cuja expressão mais nítida se encontra em Sánchez Albornoz. Também ele minimizou o factor islâmico, apesar de atribuir tanta importância à cultura árabe. Para ele, os caracteres hispânicos eram de tal modo vigorosos que se impuseram aos invasores árabes e berberes, alterando substancialmente a civilização andaluza e por isso mesmo tornando-a especificamente diferente da do resto do Islão. Sánchez Albornoz não aceita, portanto, ao contrário de Américo Castro, que o carácter específico da hispanidade resulte de uma síntese entre as tradições culturais próprias da Península, as vindas do mundo árabe e as judaicas.
Os autores portugueses posteriores a Herculano evitaram pronunciar-se sobre o problema da hispanidade. Interessaram-se apenas, como é natural, pelo da identidade portuguesa. Deve-se dizer, porém, que em termos muito globais, parecem ter-se sentido bastante perplexos pelos avanços científicos que provaram a falta de fundamento da tese de Herculano acerca da origem romana dos municípios, e pelo vigor com que os medievalistas espanhóis, Sánchez Albornoz à frente, defenderam a tese do despovoamento. Estas duas posições esvaziariam, por assim dizer, o passado nacional, ou pelo menos criariam um hiato que faria da nacionalidade um facto recente, artificial, arbitrário. Apesar das posições militantemente nacionalistas da primeira metade deste século, o problema não foi estudado com a devida seriedade, excepto por Torquato Sousa Soares e Orlando Ribeiro. O primeiro, para ir buscar ao passado romano os antecedentes da nacionalidade, preocupando-se sobretudo por encontrar a coincidência das divisões administrativas com as romanas, mas nem sempre suficientemente explícito quanto à via pela qual elas se poderiam ter transmitido ao mundo medieval. O segundo, para mostrar uma grande quantidade de indícios de continuidade entre um passado longínquo e a época medieval e moderna.
A posição tradicional, e particularmente a tese de Herculano, foi de certo modo invertida por autores mais recentes que viram na cultura islâmica as verdadeiras raízes da originalidade nacional, e nos moçárabes os portadores, não tanto das tradições romanas, mas das árabes. Para eles, o que seria verdadeiramente importado, e como que o produto de um fenómeno colonizador, alheio e deturpante, seria o cristianismo e a cultura franca da qual os conquistadores dos seculos XI e XII se fizeram portadores. Quer dizer, transformar-se-ia a diferença cultural em diferença social, em luta de classes, e identificar-se-ia o verdadeiro espírito nacional com as tradições dos povos meridionais, subjugados pelos clérigos e cavaleiros do Norte. Tal é, na sua expressão mais extremista, a posição de Borges Coelho. Autores mais moderados, entre os quais se deve salientar o nome de Oliveira Marques, apesar de evidenciarem uma clara propensão para salientar o peso do islamismo, não podem deixar de reconhecer que a individualidade portuguesa resulta de uma síntese entre duas civilizações diferentes e que em muita coisa se opunham. Para este, os costumes dos vencedores não destruíram por completo nem podem fazer esquecer o importante contributo dos vencidos.
Até aqui, porém, pouco se tem avançado no problema da verdadeira e correcta delimitação das áreas em que o contributo islâmico foi preponderante e decisivo, e aquelas em que desapareceu praticamente por completo. Pouco se adiantou quanto ao problema de saber se houve verdadeira integração dos elementos de um lado e do outro. Praticamente nada se disse acerca do processo evolutivo resultante da oposição e da sua eventual superação por meio de uma verdadeira síntese. Estas interrogações resultam em parte de não se ter delimitado com suficiente clareza aquilo que se deve aos moçárabes. Os autores recentes tendem a confundi-los, quando são, afinal, conjuntos bem diferentes um do outro, tanto do ponto de vista étnico como linguístico e cultural. Creio que uma correcta distinção entre eles pode ser justamente o ponto de partida para a resolução mais exacta do problema aqui exposto. O que aqui digo sugere, desde já, que o problema dos moçárabes tem de ser retomado pela base. Entre os dados que será necessário utilizar avultam os linguísticos e toponímicos. Não se espere, portanto, um estudo completo da questão, uma vez que não possuo conhecimentos suficientes para recorrer a este tipo de argumentos. Limitar-me-ei a recolher os elementos históricos que neste momento da investigação se podem usar». In José Mattoso, Fragmentos de uma Composição Medieval, Imprensa Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1987.

Cortesia de Estampa/JDACT