Portugal. História e Identidade
Os Moçárabes
«O problema da influência moçárabe nas origens de Portugal foi posto
pela primeira vez em termos modernos
por Alexandre Herculano. Reduzindo a sua ideia aos elementos essenciais,
pode-se dizer que ele considerou os moçárabes
a camada étnica que verdadeiramente assegurou a continuidade cultural entre a
época romana e a Idade Média cristã. Teriam constituído como que o elemento
permanente, preservador das instituições municipais, do Direito Romano e da
língua e da mentalidade latinas. Para o mesmo autor, a islamização teria sido
superficial. Representava uma cultura estranha à Península e que se haveria
dissipado com facilidade depois da Reconquista.
É bastante instrutivo aproximar esta tese da dos autores castelhanistas,
cuja expressão mais nítida se encontra em Sánchez Albornoz. Também ele
minimizou o factor islâmico, apesar de atribuir tanta importância à cultura árabe.
Para ele, os caracteres hispânicos eram de tal modo vigorosos que se impuseram
aos invasores árabes e berberes, alterando substancialmente a civilização
andaluza e por isso mesmo tornando-a especificamente diferente da do resto do
Islão. Sánchez Albornoz não aceita, portanto, ao contrário de Américo Castro,
que o carácter específico da hispanidade resulte de uma síntese entre as
tradições culturais próprias da Península, as vindas do mundo árabe e as judaicas.
Os autores portugueses posteriores a Herculano evitaram pronunciar-se
sobre o problema da hispanidade. Interessaram-se apenas, como é natural, pelo
da identidade portuguesa. Deve-se dizer, porém, que em termos muito globais,
parecem ter-se sentido bastante perplexos pelos avanços científicos que
provaram a falta de fundamento da tese de Herculano acerca da origem romana dos
municípios, e pelo vigor com que os medievalistas espanhóis, Sánchez Albornoz à
frente, defenderam a tese do despovoamento. Estas duas posições esvaziariam,
por assim dizer, o passado nacional, ou pelo menos criariam um hiato que faria
da nacionalidade um facto recente, artificial, arbitrário. Apesar das posições
militantemente nacionalistas da primeira metade deste século, o problema não
foi estudado com a devida seriedade, excepto por Torquato Sousa Soares e
Orlando Ribeiro. O primeiro, para ir buscar ao passado romano os
antecedentes da nacionalidade, preocupando-se sobretudo por encontrar a coincidência
das divisões administrativas com as romanas, mas nem sempre suficientemente
explícito quanto à via pela qual elas se poderiam ter transmitido ao mundo
medieval. O segundo, para mostrar uma grande quantidade de indícios de
continuidade entre um passado longínquo e a época medieval e moderna.
A posição tradicional, e particularmente a tese de Herculano, foi de
certo modo invertida por autores mais recentes que viram na cultura islâmica as
verdadeiras raízes da originalidade nacional, e nos moçárabes os portadores,
não tanto das tradições romanas, mas das árabes. Para eles, o que seria
verdadeiramente importado, e como que o produto de um fenómeno colonizador,
alheio e deturpante, seria o cristianismo e a cultura franca da qual os
conquistadores dos seculos XI e XII se fizeram portadores. Quer dizer,
transformar-se-ia a diferença cultural
em diferença social, em luta de classes, e identificar-se-ia o verdadeiro espírito
nacional com as tradições dos povos meridionais, subjugados pelos clérigos e
cavaleiros do Norte. Tal é, na sua expressão mais extremista, a posição
de Borges Coelho. Autores mais moderados, entre os quais se deve
salientar o nome de Oliveira Marques, apesar de evidenciarem uma clara
propensão para salientar o peso do islamismo, não podem deixar de reconhecer
que a individualidade portuguesa resulta de uma síntese entre duas civilizações
diferentes e que em muita coisa se opunham. Para este, os costumes dos
vencedores não destruíram por completo nem podem fazer esquecer o importante
contributo dos vencidos.
Até aqui, porém, pouco se tem avançado no problema da verdadeira e correcta
delimitação das áreas em que o contributo islâmico foi preponderante e
decisivo, e aquelas em que desapareceu praticamente por completo. Pouco se
adiantou quanto ao problema de saber se houve verdadeira integração dos
elementos de um lado e do outro. Praticamente nada se disse acerca do processo
evolutivo resultante da oposição e da sua eventual superação por meio de uma
verdadeira síntese. Estas interrogações resultam em parte de não se ter delimitado
com suficiente clareza aquilo que se deve aos moçárabes. Os autores recentes
tendem a confundi-los, quando são, afinal, conjuntos bem diferentes um do outro,
tanto do ponto de vista étnico como linguístico e cultural. Creio que uma
correcta distinção entre eles pode ser justamente o ponto de partida para a
resolução mais exacta do problema aqui exposto. O que aqui digo sugere, desde
já, que o problema dos moçárabes tem de ser retomado pela base. Entre os dados
que será necessário utilizar avultam os linguísticos e toponímicos. Não se
espere, portanto, um estudo completo da questão, uma vez que não possuo
conhecimentos suficientes para recorrer a este tipo de argumentos.
Limitar-me-ei a recolher os elementos históricos que neste momento da
investigação se podem usar». In José Mattoso, Fragmentos de uma
Composição Medieval, Imprensa Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1987.
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