«(…) Os andaluzes, moçárabes ou não, resistiram durante séculos ao molde
ou arquétipo para o qual os empurraram as espadas dos cristãos do norte. Daí o arrebanhar
de moçárabes para a servidão o perdão de Afonso VI aos toledanos, o combate
ideológico ao rito moçárabe. Daí também a rapidez meteórica com que Giraldo
Sem Pavor e os seus moçárabes se apoderaram de um território tão vasto para
logo se sumir e o próprio Giraldo mudar de campo sem depor as armas...
No Garbe ou Ocidente não houve extermínios
nem expulsão maciça de mouriscos como ocorreu na Espanha dos Reis Católicos e
de Filipe III (II). Se milhares de muçulmanos e não menor número de cristãos
passaram para Além-Mar; se em Dra tombou Giraldo Sem Pavor e não
esteve só, até um confessor do infante Henrique o irá acompanhar como traidor
em terras agarenas; se a ribeira do Algarve
facilitava a fuga e também alguns assaltos dos mouros da outra banda; milhares
e milhares de berberes, de árabes, de maúlas e de moçárabes ficaram
definitivamente presos no corpo social que é a nosso, navegam no nosso sangue.
Não foi só das mouras desencantadas fecundadas pelos garanhões da Reconquista que nos chegaram cromossomas
árabes e berberes. Sabe-se o que ocorria após a conquista os cristãos ocupavam
a alcáçova ou cidadela como o Cid fez em Valência e aos islamitas que persistiam
nos suas crenças era dado um prazo, geralmente um ano, para se alojarem fora
das muralhas, podendo e devendo conservar as suas herdades. Os moçárabes vencidos
pelos seus correligionários só tinham razões para se afirmarem cristãos. Mas
não só eles. Muitos néscios da Toledo
rendida, segundo Ibne Bassame, renegaram o islamismo e isso aconteceu um
pouco por toda a parte. Os exemplos que nos chegam da aristocracia moura são
abundantes e esclarecedores alguns filhos, nora e netos de Almutâmide
converteram-se ao cristianismo e o mesmo fizeram os filhos sobreviventes de Omar
ibne Alaftas, o rei berbere de Badajoz.
Os defensores da tese de extermínio sabem ler e treslêem: os mouros do Algarve vão pagar ao senhor
cristão os mesmos tributos que pagavam aos chefes muçulmanos; os vassalos
mouros de Faro tornaram-se vassalos do rei cristão. Isto está escrito e
reescrito nas crónicas cristãs. Este não-holocausto, esta não-expulsão
maciça explicam a densidade de topónimos árabes que sobreviveram na Estremadura
portuguesa, no Alentejo e no Algarve, a maior da Península Ibérica. Costa Lobo
salientou já que um dos principais
elementos populacionais da primitiva monarquia portuguesa era de ex-islamitas
que foram diminuindo pela sua incorporação na massa do povo português. Nos
finais do século XV subsistiam ainda mourarias em Santarém, Lisboa, Évora,
Beja, Estremoz, Portalegre, Elvas, Setúbal, Aviz, Faro, Tavira, Loulé e Silves.
Na
Faro de 1439 ainda sessenta a setenta moradores com as suas famílias
eram muçulmanos descendentes dos mouros da conquista.
Também, dos mouros, não ficaram apenas um ou outro escravo ou homens
dos misteres. O que estes últimos se mostraram foi mais relutantes em renegar o
Islão e abraçar a cruz. Fatos, moura de Aviz, que fugiu para Além-Mar nos fins
do século XIV, deixou na sua terra uma casa na mouraria, duas casas na vila,
uma courela no termo, um terço da herdade do Arcediago, 50 vacas, 30 cabras,
sem falar das roupas e alfaias. Na Loulé de 1484 três quartas partes
da terra pertenciam a mouros forros e o terço restante tinha-lhes pertencido
até pouco antes. Mas por que é que se cantaria ainda, no século XVI vicentino, calbi aravi, o meu coração é árabe?»
In António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção
Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN 972-21-0402-0.
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