quarta-feira, 18 de setembro de 2013

FCG. Damião de Góis. Elisabeth Feist Hirsch. «O retrato irradia brandura e sinceridade; na reprodução do queixo forte e dos lábios estreitamente cerrados evoca a bem conhecida força de convicção de Góis. Como a honestidade intelectual e a bondade…»

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«(…) Como Góis tinha a noção de que a sua habilidade linguística estava bem pouco à altura do que ambicionava, apreciava sobremodo o auxílio do amigo e recompensava-o com liberalidade. É possível que Góis sustentasse Grapheus financeiramente, e é certo que lhe mandava muitas iguarias importadas do vasto imperio português. Grapheus não podia retribuir em dinheiro a generosidade do seu patrono mas, ciente do desejo que Góis tinha de uma fama imorredoura, prometeu imortalizar-lhe o nome através do poema citado. De acordo com a prática humanística corrente Grapheus incluiu um retrato à pena de Góis, traçado com as pinceladas linguísticas de um verdadeiro artista. Grapheus empregou epítetos altamente lisonjeiros como sincero, franco, honesto, alegre, leal e alheio à tristeza na descrição do carácter do retratado, mas não exagerou indevidamente e exprimiu o que foi muitas vezes ecoado pelos amigos de Góis. Um desenho, o único retrato que há de Góis, possivelmente executado por Dürer, confirma a caracterização feita por Grapheus. O retrato irradia brandura e sinceridade; na reprodução do queixo forte e dos lábios estreitamente cerrados evoca a bem conhecida força de convicção de Góis. Como a honestidade intelectual e a bondade eram os traços da personalidade de Góis especialmente notados por Grapheus e por outros amigos, não se pode imaginar, como afirmam alguns autores, que os contemporâneos se iludissem ao aceitarem como uma imagem fiel o retrato que exprime tais qualidades. De facto, a veracidade de Góis muitas vezes chegava à temeridade e causava-lhe grandes sofrimentos e dificuldades.
Em contraste com o estudo da língua e literatura clássicas, em que o auxílio de Grapheus era precioso para um principiante, o pendor de Góis para a história, cedo estimulado pelos interesses do próprio rei Manuel I, era bem definido e aliava-se à atracção e curiosidade pelos feitos de além-mar dos portugueses. As viagens diplomáticas ofereciam-lhe uma oportunidade ideal para alargar o conhecimento geral e a perspectiva da historia, mas sempre que possível tentava também aprofundar e aumentar o conhecimento das terras distantes que tinham sido abertas ao estudo dos ocidentais pela exploração marítima. Como já foi dito atrás, os dois países que mais lhe excitavam a imaginação eram a Etiópia e a Índia; enquanto que aquela actuava nele como um estímulo para o pensamento religioso, esta atraía-o do ponto de vista histórico e parece ter sido um interesse constante. Assim, por exemplo, nas várias visitas que fez a Augsburgo, Góis examinou a famosa biblioteca de Peutinger e leu parcialmente um livro importante para um projecto que tinha de escrever, no futuro, uma historia da Índia. Mais tarde, quando estava bastante embrenhado nesse plano, Gois pediu a Johann Jacob Fugger que lhe adquirisse a obra, pois Peutinger não era um amigo pessoal a quem pudesse pedir semelhante favor.
O conhecido mercador de Augsburgo fez o que pôde mas Peutinger recusou, não querendo desfazer-se das suas preciosidades. Fugger aconselhou Góis a aguardar até à morte de Peutinger, assegurando-lhe que ele já tinha um pé na cova. Os motivos patrióticos subjacentes à escolha de assuntos históricos representavam uma força central da estrutura intelectual de Góis e reflectiam-se nas relações que tinha com os seus numerosos amigos pela Europa fora. Por exemplo, Johann Jacob Fugger era um dos seus excelentes amigos na Alemanha, mas cerca de 1540 as relações entre ambos tornaram-se muito tensas devido a um desacordo sobre as observações feitas por Sebastião Münster a respeito da nação espanhola na sua edição da Geografia de Ptolomeu. Góis, identificando-se com a Espanha como nação irmã, refutou vivamente as afirmações ofensivas de Münster (baseadas em informações dadas por Servetus) num panfleto intitulado Hispania. Como a Península Ibérica representava para ele uma unidade nacional, Góis tratou tanto da Espanha como de Portugal no seu panfleto.
Fugger melindrou-se perante a dureza com que Góis tratou o seu compatriota, famoso professor de Hebreu na Universidade de Basileia, e escreveu-lhe uma carta em que lhe manifestava o desagrado que sentia. O português, embaraçado, respondeu a Fugger com protestos de estima pela Alemanha, país que ele tinha sempre honrado como qual-
quer coisa de divino, e afirmando que na realidade tinha sido bastante brando com Münster pelo facto de ele ser alemão». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT