Os processos de escolarização e a
constituição da cité política nas sociedades modernas
europeias. Pensar a socialização política escolar da escola contemporânea a partir
da história da experiência escolar em Portugal
«Num texto recente sobre
os processos de construção da
alfabetização e da escolaridade: o caso português, António Candeias propõe
uma outra forma de reflectir as relações entre a sociedade portuguesa e os processos
de aquisição das competências relativamente à escrita. Ao contrário da habitual
interrogação sobre as causas do atraso do nosso país face à penetração dos
mundos da escrita, o autor sugere ser mais
interessante perceber a maneira como, durante o século XX, os portugueses foram
constituindo laços cada vez mais firmes com um tipo de cultura escrita, qual o papel
que as suas próprias vontades e necessidades tiveram nesse caminho e qual o
presumível papel que o Estado e outras instituições, independentemente das
ideologias expressas, foram tendo nesta construção de uma sociedade letrada.
Ainda segundo o mesmo
autor, uma das etapas fundamentais para se entender a construção dos referidos
laços entre os diferentes sectores da população portuguesa com a cultura
escrita de tipo escolar passava, por um lado, pela indispensabilidade de se
efectuar uma distinção entre os conceitos de alfabetização e de escolarização
e, por outro lado, pela indispensabilidade de combinar as metodologias de
carácter extensivo e documental com metodologias de carácter intensivo,
circunscrito e etnográfico nos estudos sobre esta imbricada relação. Assim, as
duas questões assinaladas chamam a atenção tanto para a necessidade de
distinguir dois processos de aprendizagem que são muitas vezes confundidos no
plano da fundamentação conceptual como para a necessidade de utilizar uma
pluralidade de métodos e de técnicas de observação, combinação muito útil para
apreender (no sentido de seguir) de uma forma cada vez mais apurada a
construção dos sentidos das acções dos indivíduos modernos, quer como
indivíduos singulares, quer como indivíduos ligados a distintas formas
colectivas.
Insistir sobre a
importância de distinguir conceptualmente os processos de alfabetização e de
escolarização parece nada ter a ver com as reflexões sociológicas que
pretendemos realizar sobre os actuais processos de socialização política dos
professores e estudantes do ensino secundário no quadro do Observatório de
Escolas promovido no ICS. Num primeiro olhar, tudo indica que não há
qualquer relação. Num olhar mais aproximado das interrogações e hipóteses que
pretendemos lançar, tal relação não só faz sentido, como é imprescindível. Na
verdade, António Candeias faz notar que as transições verificadas entre
os processos de alfabetização da leitura e da escrita para os processos de
aquisição da cultura letrada de tipo escolar foram decisivas tanto na construção
como na consolidação do projecto imaginado de modernidade europeu, sobretudo na
sua dimensão política.
Não vamos aqui delinear
as diferenças entre cada um destes dois processos nas complexas relações que
desenvolvem com a cultura letrada, nem tão-pouco vamos estabelecer as
diferenças entre dois tipos de cultura letrada e as suas correspondências com
cada um destes processos. O que neste momento nos interessa sublinhar é que a
escolarização aparece na modernidade como um processo formal e instituído de
transmissão e aquisição da cultura letrada, mas
também de submissão de coortes populacionais com níveis etários bem
determinados a uma forma de socialização imposta e aplicada através de uma
instituição construída expressamente para o efeito […], o que transforma a
escola numa instância central que se
organiza em rede e se articula com outras formas de educação, sob o comando
político, pedagógico e administrativo do Estado.
NOTA: A noção de cité é
aqui utilizada a partir do sentido que Luc Boltanski e Laurent Thévenot lhe
conferem ao inspirarem-se nas filosofias políticas clássicas que lhe atribuem
como objecto a possibilidade de esboçar uma ordem legítima assente em
princípios de justiça. A cité política pode assim ser entendida
como um modelo analítico que permite identificar os diferentes regimes de
justificação que estão na base da crítica, da disputa ou do acordo entre os
membros de um mesmo espaço social nas sociedades modernas complexas.
Tendo em conta a
distinção operada por Wagner quando este sociólogo reflecte sobre os dois
principais tipos de narrativas constitutivas do projecto imaginado de modernidade,
a narrativa com o enfoque disciplinar e a narrativa com o enfoque na
autonomia, é possível avançar com a hipótese geral de que os processos de
escolarização, tal como são apresentados conceptualmente por António Candeias,
contribuem para sustentar tanto as teses da disciplina como as teses da
liberdade no período de transição entre a modernidade liberal restrita e a
modernidade liberal organizada. Seguindo este raciocínio, a natureza
institucional do modelo escolar produzido historicamente em toda a Europa,
apesar das diferenças de ritmo na sua efectiva realização prática, apresenta
efeitos não despiciendos em relação à difusão de um certo perfil de cité política que é já marcante ao longo de
todo o século XIX, mas que se torna mais representativo com o triunfo político
da configuração administrativa do Estado-nação». In José Manuel Resende e Bruno
Miguel Dionísio, Escola pública como ‘arena’ política. Contexto e ambivalências
da socialização política escolar, Análise
Social, vol. XL, 2005.
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