Considerações Gerais
«(…) Os 484 termos ou formas do rumanho
reunidos em o nosso Vocabulário
classificam-se, em quanto á sua origem próxima, do modo seguinte:
- 353 encontram-se também no gitano, em geral sem diferença considerável de sentido ou de forma;
- 3 não se encontram nos vocabulários gitanos que temos á mão, mas occorrem noutros dialectos tsiganos (bato, bibiora, tarní);
- 68 são derivados de palavras hispanholas ou portuguesas;
- 8 são palavras portuguesas ou hispanholas de significação alterada ou especialisada (andantes, aparador, arboleo, bicha, churon (?), frumachos (?), guenassuertes, tarrosa). Vid. também apatuscos, patuque e patusco;
- 1 (culebra) provém da germania;
- 1 (ancia) provém da germania ou do calão;
- 1 é uma forma portuguesa muito alterada foneticamente, mulla.
- 47 são de origem para mim incerta ou desconhecida. Talvez que nova investigação do gitano e dos outros dialectos tsiganos prove a origem tsigana de alguns desses termos, parte dos quaes tem aspecto que a faz suspeitar.
O calão e a língua dos ciganos
Tem-se confundido muitas
vezes a linguagem dos tsiganos em geral com o calão. Sabemos já o
que é a primeira; vejamos o que é o segundo e se entre uma e outro existem
quaesquer relações. Calão, gira, gíria ou
geringonça são os termos com que em português se designa o vocabulário
especial dos criminosos de profissão, fadistas, contrabandistas, garotos e outra
gente de hábitos duvidosos, que por aquelle meio buscam não ser entendidos da
sociedade geral. Por extensão dão-se ainda aquelles mesmos nomes á terminologia
especial de uma classe, de uma profissão licita, e sobretudo ao conjuncto de
termos particulares, muitas vezes de caracter cómico, que usam certos grupos
sociaes, como os estudantes, os actores, os pintores, os pedreiros, os
typographos, os soldados.
O calão ou giria não é um dialecto:
tem palavras alteradas phoneticamente, sem duvida, mas por processos geralmente
distinctos dos que caracterisam a alteração phonetica dialectal; não tem em regra
nem morphologia nem syntaxe que o separem da lingua geral em que por assim
dizer se encrava. Uma outra differença fundamental separa demais o calão dos dialectos; naquelle as
transformações próprias são geralmente queridas, intencionaes; nestes as transformações
são geralmente espontâneas, inintencionaes. Ha duas espécies de giria: numa as alterações são puramente phoneticas
só a matéria da palavra se modifica; noutras accrescem ás transformações dessa
espécie, que então se tornam menos numerosas, modificações morphologicas e semanticas
(de significação). Da primeira espécie é uma giria usada entre nós pelas creanças nos collegios, que consiste em
accrescentar a cada syllaba de uma palavra uma outra constituída por um g ou p seguido da vogal daquella syllaba; assim tu queres ir a casa torna-se tu-pu
qué-pé-rés-pés ir-pir a-pa cápá-za-pa.
Os caixeiros da Baixa,
em Lisboa, usavam e usam ainda provavelmente uma giria do mesmo género, mas mais perfeita, que consistia numa
inversão de consoantes: não quero ir
passear hoje tornava-se ãon' reco
ri sapear johe. Essa giria
era fallada e entendida com muita facilidade pelos iniciados. Os principaes
processos das girias do segundo
género serão estudados depois. Essas girias
podem ser denominadas de vocabulário particular.
Tendo definido o que
deve entender-se por calão ou giria, examinemos agora a origem d'estas
palavras. Os hispanhoes denominam as mesmas linguagens artificiaes com o termo germanía, e tinham o synonymo antiquado gerigonza, giringonza, xeringonça;
os francezes com os termos jargon e argot; os italianos com os termos gergo e lingua furbesca; os
inglezes com o termo cant; os
allemães com o termo Rothwelsh (á letra,
italiano vermelho), os hollandezes com a expressão bargoensch ou dieventael (á
letra, lingua de ladrões), os russos com o vocábulo afinskoe, os tcheques com a palavra hantyrka.
O termo calão como synonymo
de giria parece não ter correspondente
phonetico fora de Portugal; a sua etymologia é todavia muito transparente: calão,
propriamente, quer dizer cigano, lingua de
cigano; é um termo com que os ciganos do nosso país ainda hoje se designam.
A palavra gira, giria liga-se, ao que parece, a gerigonça,
giringonça, que como vimos se encontrava
também em hispanhol, ao francez jargon,
provençal gergonz, e ao italiano gergo, gergone. A etymologia desses termos oferece bastantes dificuldades».
In
Adolpho Coelho, Os Ciganos de Portugal, Com um Estudo sobre o Calão, Sociedade
de Geografia de Lisboa, Congresso Internacional dos Orientalistas, SSGL,
Imprensa Nacional, Lisboa, 1892.
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