domingo, 29 de setembro de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «… narra a petição de Magalhães, e o mau despacho d'el-rei: ...; o qual Fernão de Magalhães indo ao reino, allegando a el-rei seus serviços, e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em sua moradia por mez, o que lhe el-rei denegou…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) De mais, o portuguez esclarecido trazia já na mente a traça do grande commettimento que devia illustrar o seu nome, e vinculal-o perennemente nos fastos das nações. Se lhe negavam três cruzados por anno, para os quaes tinha posto a juros a sua espada na Índia, e o seu sangue em Azamor, o que não havia de ser, quando elle pedisse a el-rei que lhe desse dois navios para ir correr os mares e descobrir novos dominios á coroa de Portugal? Como havia de fiar a sua futura gloria de quem já lhe punha abertamente em duvida a passada fama de suas façanhas? Claro estava que não havia de ser mais bem succedido na petição de heroe do que fora então na de requerente e de soldado.
Eis aqui como Gaspar Corrêa, na simplicidade do seu estylo e na incorrecção habitual da sua linguagem, narra a petição de Magalhães, e o mau despacho d'el-rei: ...; o qual Fernão de Magalhães indo ao reino, allegando a el-rei seus serviços, e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em sua moradia por mez, o que lhe el-rei denegou, por lhe não cair em graça, ou porque assim estava permittido que havia de ser; Fernão de Magalhães d'isto aggravado, porque o muito pediu a el-rei e elle o não quiz fazer, lhe pediu licença para ir viver com quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com elle. El-rei lhe disse que fizesse o que quizesse; pelo que lhe quiz beijar a mão, que lhe el-rei não quiz dar. Fernão de Magalhães desnaturalisou-se de portuguez, e foi-se a Castella pedir que o inscrevessem ali como cidadão. Fez mal? Fez bem?
Castella era n'aquelle tempo, como antes, como depois, a inimiga de Portugal, ainda quando a paz dissimulava nas apparencias da concórdia a hereditária hostilidade das duas coroas peninsulares, que aspiravam á exclusiva supremacia. Castella era a émula de Portugal nas conquistas transatlânticas. Castella era na Europa a nação perpetuamente cobiçosa da estreita orla Occidental que as lanças portuguezas haviam sempre defendido contra os partidários da unidade hispânica; era nos mares o estado que comnosco litigava o império e poderio. Renegar a pátria e ir-se a Castella era tão feia acção como na antiguidade o acolher-se um atheniense ou um espartano á corte dos reis da Pérsia, depois de haver contra elles pelejado em Marathona ou em Plateia.
Desnaturalisar-se de portuguez e ir offerecer a sua espada aos reis catholicos era porventura maior sacrilégio, então, do que renegar a pureza da verdadeira fé, e transviar-se nos erros de Luthero e de Calvino. No portuguez não foi para ser louvada a represália. No homem que havia de pertencer á civilisação e á humanidade mais do que aos estreitos limites da sua pátria, podemos relevar o impulso da offendida dignidade e do amor próprio justificado.
Para ser portuguez havia de ver menosprezada a sua gloria e mal galardoados os seus feitos. Para não faltar á religião da pátria havia de faltar á religião de honra; havia de devorar as affrontas em silencio, e reprimir no peito os rebates da sua varonil indignação. Para ser portuguez havia de votar-se talvez para sempre á obscuridade, e ver frustrado o seu empenho de conquistar para si um nome illustre, a par de quantos houve mais distinctos na historia das modernas navegações.
Com a fidelidade de Fernão de Magalhães lucrava a pátria e o rei um natural e um vassallo. Mas perdia o drama glorioso dos descobrimentos transatlânticos um eminente personagem, Portugal um nome venerando, a moderna civilisação um d'estes fervorosos operários que da espada e do navio tem feito os mais poderosos instrumentos do progresso. Fernão de Magalhães pagou-nos generosamente o desamor e affronta de renegar-nos. Servia a Castella quando circumnavegava o globo. Mas o nome de Magalhães ficou sempre portuguez, e a gloria das suas navegações ha de ser
perpetuamente gloria também de Portugal». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT