NOTA: De acordo com o original
«(…) A necessidade
obriga muitas vezes os que governam a parecerem duros de coração para não
faltarem aos essenciaes deveres do cargo e a tornarem cruenta a justiça em
alguns maus para salvarem de maiores calamidades a muitos bons e innocentes, e
sobretudo para levarem a cabo a traça de que depende uma nova conquista social.
A idéa, com ser immaterial e, ao parecer, inerme e inoffensiva, tem deixado
muitas vezes na sua marcha triumphante um sulco de sangue em seu caminho. Absolvamos
pois o nosso Fernão de Magalhães do que teve de cruel o seu procedimento,
e sigamol-o outra vez em sua derrota. A 24 de Agosto de 1520 se fizeram de novo ao mar as caravellas. Pouco depois
naufragou, na violência de uma borrasca, a nau Santiago, em que ia o piloto-mór João Serrano, sem que houvesse que
lastimar a perda da tripulação e da fazenda. Navegaram as quatro caravellas que
ainda restavam, até darem fundo n’um rio a que pozeram nome Santa Cruz, e guarecendo-se
ali contra os temporaes, e fazendo aguada e provisão do que a terra podia
ministrar, a 18 de Outubro se aventuraram de novo ao Oceano.
Em breves singraduras
deram vista de um promontório, e por ser em dia em que a egreja celebra as onze
mil virgens, lhe pozeram nome Cabo das Virgens, com que ainda hoje
é conhecido, e demora quasi no extremo austral do continente americano. Notaram
os da nau Victoria que a sul do cabo
o mar se ia internando. Reconhecida então a costa, se descobriu que era ali a
boca de um estreito a que os homens da caravella chamaram ao principio estreito
da Victoria (Gaspar Corrêa diz que lhe pozeram o nome de rio da
Victoria. Então se partiu do rio e correu ao longo da costa até chegar a um
rio, a que poz nome da Victoria, que
tinha a terra alta de ambas as bandas. In
Lendas da Índia, tomo II, parte II). Mandou o capitão-mór que as três naus,
Concepcion, Victoria e Santo António,
se fossem a alcançar noticias mais exactas d’aquelle estreito, em quanto Magalhães
na Trinidad os ficava esperando por
cinco dias, e indo as caravellas pelo estreito dentro, succedeu rebellar-se a tripulação
contra Álvaro Mesquita, que ia n’uma d’ellas por capitão, prendendo-o e
fazendo-se logo á vela para Hespanha.
D’este rio, diz Gaspar
Corrêa, (chama rio n’este logar ao estreito de Magalhães, como se
deprehende do que diz mais adiante: … então
o Magalhães, com os três navios, que tinha, se foi pelo rio dentro, porque
correu passante de cem legoas e saiu da outra banda do rio) lhe fugiu a nau de Mesquita, que não soube
se o mataram ou se foi por sua vontade ; mas um adivinhador estrolico (astrólogo) lhe disse
que o capitão ia preso e se tornaram para Castella, mas que o imperador lhe
faria mal. Voltaram as duas naus trazendo ao capitão-mór apraziveis novas
acerca do que suppunham ser estreito. Como não chegava a caravella de Mesquita,
esteve o capitão-mór á sua espera por muitos dias, até que tomando conselho com
os outros capitães, determinou engolfar-se no estreito, e navegando sem
descobrir em uma e outra costa outros signaes de habitadores, mais do que os
fogos que via accesos sobre os serros, saiu a final no Mar do Sul, a 27 de Novembro
de 1520, depois de ter gastado vinte e dois dias n’esta derrota. O
estreito novamente descoberto recebia o nome de Magalhães, que ainda hoje conserva, e mais uma gloria
portugueza ficava memorada nos fastos da moderna geographia.
Um portuguez descobriu o
Oceano navegando sempre desde Hespanha, sem
haver como Balboa descoberto das alturas de Quarequa, no isthmo de Panamá, aquelle
mar desconhecido, (alguns dias depois de haver Balboa descoberto o Mar do Sul,
o hespanhol Alonso Martin achando um caminho desde Quarequa até ao porto de S. Miguel,
foi o primeiro europeu que sulcou o Mar do Sul navegando sobre elle n’uma canoa).
Magalhães atravessou o Pacifico (que assim ficou sendo chamado aquelle mar pela
fama de bonançoso), trazendo nas suas aguas no rumo de noroeste uma loxodromia
de mil e oitocentos e cincoenta myriametros da nossa actual medida iteneraria, e
na vasta região que se chama Polynesia. Por 16º e 15’ de latitude deu vista de uma ilha deserta, a que chamou
de S. Paulo, e mais adiante em 11° e 18’ passou n’outra ilha, a que poz nome dos
Tubarões». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos.
Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos &
Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.
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Portuguesa/JDACT