Ainda no meio da vida, já estou cansado como se fosse
nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça branca e a alma devastada pela
fúria de todos os ciclones. In António
José de Almeida.
Memórias da tia Graça
«Quando casaram, em 1890, meus paes foram viver para uma
casa na Rua Alexandre Herculano, em Coimbra, onde meu pae frequentava o curso
de Leis. Já expliquei atraz que meu pae, aos vinte e seis anos, voltou aos
estudos, no lyceu, por exigencia de meu avô, Antonio Diogo Silveira, quando lhe
foi pedir licença paro namorar a filha, Albertina: - só com um curso superior
lha darei, foi a resposta. E apesar de meu pae cumprir o prometido, não lhes deu
a autorisação, tendo eles casado contra a sua vontade. Meu avô era um homem muito
teimoso e duro e nunca fez as pazes com o genro. Naquele tempo as coisas eram
muito diferentes de hoje, um pae tinha todos os direitos sobre as filhas, que
lhe obedeciam cegamente. Uma desobediencia era um acto reprovavel e pouco
vulgar. Assim, minha mãe, que era muito doce, teve uma coragem inaudita, ditada
por grande amor, ao sair de casa dias depois de faser os vinte e um anos,
contrariando as ordens dele.
Lembro-me de meu pae, muito
alto, consta-me que bonito homem, saudavel, bem proporcionado, musculoso e
forte, moreno de olhos pretos, expressivos e vivos, eguaes aos da filha Maria
Tereza, minha irma. Digo consta-me, porque a ideia que me ficou dele, já
estragado pela doença, não era essa. Era muito sociavel mas pouco comunicativo
quanto aos seus sentimentos e até quanto aos dos outros, pois nunca lhe ouvi
criticas nem palavras de censura contra o mau procedimento de ninguem. Mas
quando embirrava com uma pessoa era manifestamente antipatico. Pouco meigo com
os filhos, encobria os seus sentimentos, excepto com minha mãe a quem adorava a
seu modo. Digo a seu modo porque, discretamente, era muito dado às damas, tal
como seus irmãos, todos os Teixeiras sempre foram sensuais e loucos por
mulheres. Mas nesse tempo não se achava mal nisso, desde que não prejudicasse a
vida familiar; até se considerava prova de virilidade um homem ter aventuras
fóra do casamento. Meu pae tinha uma rara força de vontade para conseguir os
seus fins. Manifestou-a na sua rapida abstenção de fumar, ele que era um grande
fumador, e sobretudo na realização dos seus estudos que abandonara em rapaz
para se dedicar à estroinice. Por causa da estroinice gastou uma grande parte
da fortuna que herdou, antes de conhecer minha mãe. Em novo teve saude,
dinheiro e abandono da familia, o pae morrera quando ele era pequeno e a mãe
voltara a casar um ano depois, metendo os filhos em colegios internos
religiosos. Os padres desse tempo erem, na maior parte dos casos, pouco zelosos
e imprimiam pouca religiao nos alunos.
Minha mãe era do genero mignone, muito branca, cabelos e olhos
escuros, figura linda e cinturinha de vespa. Foi sempre muito apreciada por
todos, nunca ouvi ninguem dizer senão bem dela, o que é dificil, pois a má
lingua encontra sempre alguma coisa para criticar. Fazia rendas e bordados
lindos, apesar de sua mãe, minha avó materna que não conheci, costumar dizer às
filhas que elas não bordavam, alinhavavam. As senhoras dessa epoca tinham uma
paciência extraordinária, bordando a cabelo ou finos fios de seda, tambem é verdade
que tinham tempo. Minha avó Ana, mãe de meu pae, é que nunca bordou e gostava
de minha mãe como filha, desconfio que gostava mais da nora que do proprio filho.
Sendo autoritaria, agradava-se da meiguice dela. Minha mãe, muito sociavel,
alegre e generosa, onde estava, fazia logo amigos. Até com os creados, que
nessa altura eram tratados com muita rispidês, tambem é verdade que eram muito boçais,
ela era simpatica. Nesse tempo as senhoras eram muito boas donas de casa,
destinavam optimas refeiçoes, olhavam pelo serviço das creadas e pelas roupas
da lavadeira, que vinha dos arredores de Lisboa em galeras puxadas a 4 cavalos.
Fasiam as compras da mercearia ao mez, fechavam tudo à chave na dispensa, que
era aberta todas as manhãs para a senhora dar à cosinheira o necessarío para
aquele dia. Os róis da mercearia e das roupas eram um primor de bem feitos, com
uma letrinha muito bonita. Havia muita abundancia mas nada era desperdiçado. As
refeições constavam sempre de trez pratos, ao almoço e ao jantar: um prato farto de cozido, com todas as carnes,
chouriços, arroz, hortaliças, etc., depois o prato do meio, peixe ou guizado, seguindo-se
o assado e só depois as sobremezas. Quando havia vizitas serviam-se muito mais
pratos. Tudo mudou, até os gostos. Lembro-me de meu pae recomendar que não se desse
pescada em dias de cerimonia porque era um peixe ordinario. Hoje, à pescada
chega-lhe quem pode. Mas acima de tudo, o que espanta é como se podia comer
tanto.
Quando eram convidadas para jantar
fora, as senhoras não comiam quase nada e ficavam cheias de fome, porque era
feio mostrar apetite. As veses sahiam, apenas de tarde e raramente sosinhas:
visitavam as amigas ou iam à Baixa comprar um carrinho de linhas, ou agulhas,
um pretexto para encontrarem conhecimentos. O chá das cinco em Lisboa era na Ferrari,
na Bénard, no Rendez-vous des Gourmets, conforme a moda do
momento. Cada senhora tinha o seu dia de receber, minha mãe recebia ao Domingo.
Os senhores elegantes, depois do trabalho, ou aqueles que nada fasiam, e eram
muitos, iam postar-se, de tarde, à porta da Brazileira ou da Havaneza,
no Chiado, para verem passar
as senhoras que cumprimentavam, tirando o chapéu de coco, ou o chapéu mole
(isto passava-se em Lisboa, porque na provincea era diferente)». In Maria
Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN
972-23-1857-8.
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