Tempo
de Apresentar. Uma herança peculiar
«(…)
E continuou: - Em tempos pensei fazer disto um pequeno museu de trabalhos de
ferreiro, quando abandonasse o oficio, mas desisti da ideia. Mas olha que
ficava aqui bem uma livraria!, que é uma espécie de museu das palavras, não é? Espantado
com o discurso do velho ferreiro, logo nesse momento o meu tio decidiu qual
seria o nome da livraria. Naqueles tempos, os imóveis antigos tinham pouco
valor, mesmo os situados no centro da cidade, pois não havia a dinâmica comercial
nem a procura que viria a surgir anos mais tarde, que muito os valorizaria. Sem
recorrer a empréstimo nem a qualquer documento escrito, o meu avô pagou a loja
em cinco anos, tal como combinado com o ferreiro. Para reforçar a ideia de um
museu de palavras, o meu tio expôs uma máquina de escrever antiga sobre uma
secretária, ao lado de pequenas pilhas de livros ainda mais antigos. Coisa
curiosa era o facto de, regularmente, ele procurar nos dicionários uma palavra
e escrevê-la com aquela máquina numa pequena cartolina. A palavra era escrita com
maiúsculas vermelhas e sob ela o significado, a preto. Colocava uma dezena
desses papelinhos na livraria, em pequenos expositores de madeira, inclinados.
Cada dia substituía um. Os clientes olhavam-nos curiosos, olhavam e olham, pois
eu continuo a fazer rodar as centenas de cartolinas que ele deixou guardadas na
gaveta da secretaria, onde continuam. Agora já estão amarelas e começam a ter o
cheiro próprio do papel antigo e muito mexido. Tornaram-se também peças de
museu, e talvez também por isso suscitem a curiosidade dos clientes.
A
planta da livraria tem a forma de um L,
gordo, virado para baixo do lado de quem entra. A ponta do braço mais curto é
um recanto à direita, por trás do volume ocupado pela escada que dá acesso ao
andar de cima. Debaixo da escada está uma retrete minúscula, também a arrecadação
dos apetrechos de limpeza. O tecto é atravessado por fortes e toscos barrotes,
onde assenta o soalho que serve de chão ao andar de cima. No barrote do meio, mais
volumoso do que os outros, permanece um gancho de ferro, com cerca de um palmo,
a que o ferreiro dava uso no seu trabalho. Essas madeiras, escurecidas pelo
tempo, jogam bem com as grandes pedras centenárias do chão, toscas, irregulares
e polidas pelo uso, que o meu tio fez questão de preservar. A secretária com a
máquina de escrever está encostada ao fundo, com a frente virada para quem
entra. Ao seu lado, uma cadeira, também antiga, convida os clientes a nela se
sentarem. Um balcão, com apenas cinco palmos de comprimento e um e meio de
largura, está junto à entrada, com um topo formado no pequeno espaço de parede
que existe entre a porta e a pequena janela-montra. Por trás está uma cadeira
alta, onde me sento quando tenho necessidade de descansar as pernas ou para
tratar de assuntos mais demorados que envolvam papeladas. Tudo o mais são
estantes cheias, ao ponto de quase não deixarem ver as paredes por trás.
O
meu tio mexia nos livros como quem faz festas a um gato: com jeito e carinho.
Assim que retirava um da prateleira, soprava-o, para expulsar o pó acumulado
sobre as folhas apertadas umas nas outras. Fazia isso mesmo que não houvesse
pó. Passava com a mão na capa, olhava-a e só depois abria o livro, devagar.
Livros de capa fina e com muitas páginas abria-os com os polegares fazendo
pressão com os restantes dedos junto da lombada, para não lhe criar vincos. Outros,
com capa dura e grandes páginas, abria-os completamente, passando com as mãos
por elas como quem alisa um pequeno lençol. Não teve filhos. Casou com uma
mulher que sofreu durante muitos anos de uma doença rara, que a foi secando até
à morte, antes dos quarenta. E não voltou a casar. Morreu com sessenta e dois
anos, num dia igual a tantos outros, caindo inanimado ao virar a primeira esquina
depois de ter saído da livraria. Estava eu no último ano do curso, precisamente
o mesmo que o meu tio tirara, quando ele morreu. Mal o terminei peguei no negócio.
Era muito novo, mas o contacto regular que há alguns anos tinha com a livraria,
e a aprendizagem feita com o meu tio, sobretudo nos períodos de férias
escolares, facilitaram-me o começo. Apaixonei-me por livros muito cedo, e da
paixão fiz profissão». In António Galrinho, O Museu das Palavras,
Temas Originais, Setúbal, Livraria Uni-Verso, 2014, ISBN 978-989-688-216-7.
Cortesia
de TOriginais/JDACT