Som e Pensamento
«(…) Só pelo som se pode articular o conteúdo da música. Como já vimos,
qualquer verbalização é, a mera descrição da nossa reacção subjectiva, ou mesmo
fortuita, à música. Mas o facto de não se poder articular por palavras o
conteúdo da música não significa, evidentemente, que ela não tenha conteúdo; se
assim fosse, as execuções musicais seriam totalmente desnecessárias e seria
impensável que nos interessássemos por compositores, como Bach, que
viveram há séculos. No entanto, nunca devemos deixar de perguntar a nós mesmos
qual é exactamente o conteúdo da música, essa substância intangível que só pelo
som se pode exprimir. Não se pode defini-la simplesmente como sendo dotada de
um conteúdo matemático, poético ou sensual. É tudo isso e muito mais. Tem que
ver com a condição humana, na medida em que a música é escrita e executada por
seres humanos que exprimem os seus pensamentos, sentimentos, impressões e
observações mais íntimos. Isto aplica-se a toda a música, independentemente do
período em que os compositores viveram e das óbvias diferenças estilísticas
entre eles. Por exemplo: trezentos anos separam Bach e Boulez, e no
entanto ambos criaram mundos que nós, enquanto executantes e ouvintes, tornamos
contemporâneos. A condição do ser humano pode, evidentemente, ser tão grande ou
tão pequena quanto o ser humano queira que ela seja, e o mesmo se pode dizer da
própria composição.
O maestro Sergiu Celibidache dizia que a música não se transforma
em uma coisa, mas que uma coisa pode transformar-se em música. Queria com isto
dizer que a diferença entre som, um som puro ou uma série de sons, e música
reside em que, quando fazemos música, todos os elementos têm de se integrar num
todo orgânico. Em música não há elementos independentes, o ritmo não é
independente da melodia, a melodia não é, evidentemente, independente da
harmonia e nem mesmo o tempo é um fenómeno independente. Temos propensão para
pensar que, pelo facto de alguns compositores nos darem marcações metronómicas,
só precisamos de tentar espremer todas as notas e respectiva expressão de forma
a caberem numa determinada velocidade, esquecendo-nos de que o tempo não se
ouve, só se ouve a música a uma determinada velocidade. Se o tempo for
demasiado rápido, o conteúdo é incompreensível porque o executante não consegue
tocar claramente todas as notas ou o ouvinte não consegue apreendê-las; se o
tempo for demasiado lento, o conteúdo é igualmente incompreensível porque nem o
executante nem o ouvinte conseguem aperceber-se de todas as relações entre as
notas». In Daniel Barenboim,
Everything is Connected, ThePower of Music, 2007, Está Tudo Ligado. O
Poder da Música, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-53-0434-1.
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