A Época. Os Portugueses em Marrocos no século XVI
«(…) Os biógrafos de Luís de Camões situam a sua presença em Ceuta
entre 1549 e 1551. O Poeta terá, permanecido naquela cidade como membro
da guarnição e combatido nas frequentes escaramuças com os Mouros. Numa delas
terá, perdido um dos olhos, efeméride que alguns autores consideram ter
ocorrido durante um combate naval no estreito de Gibraltar. Na Elegia II, o Poeta descreve-nos o
monte Acho, em Ceuta, de maneira que sugere a sua permanência no local:
Subo-me ao monte que Hércules
Tebano
do altíssimo Calpe dividiu,
dando caminho ao mar Mediterrano;
dali, estou tenteando aonde viu
o pomar das Hespéridas, matando
a serpe que a seu passo resistiu.
Nos Lusíadas surge-nos uma descrição semelhante quando se refere a
Espanha:
Com Tingitânia entesta, e ali parece
que quer fechar o Mar
Mediterrano,
onde o sabido Estreito se
enobrece
co'o extremo trabalho do Tebano.
A comparação de Nuno Álvares, cercado pelos castelhanos, ao leão atacado
pelos caçadores junto a Ceuta, parece ser uma recordação da época em que permaneceu
naquela praça:
Está ali, Nuno, qual pelos outeiros
de Ceuta está o fortíssimo leão,
que cercado se vê dos cavaleiros
que os campos vão correr de Tetuão:
perseguem-no com as lanças, e
ele, iroso,
torvado um pouco está, mas não medroso.
Com torva vista os vê, mas a
natura
ferida e a ira não lhe compadecem
que as costas dê, mas antes na
espessura
das lanças se arremessa, que
recrescem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
tinge co’o sangue alheio […]
O episódio em que o cativo Pero Galego caçou um leão, narrado por
António Saldanha na Crónica de Almançor,
comprova a abundância daqueles animais no Magrebe, apesar de ter ocorrido meio
século depois. A cidade de Ceuta era governada, no tempo de Camões, por Afonso Noronha, quarto
filho de Fernando, 2.º marquês de de Vila Real, que desempenhou aquelas funções
de 1538
a 1550. A época era de profunda crise para as armas portuguesas. Em 1541 perdera-se Agadir e, no
mesmo ano, foram evacuadas as fortalezas de Safim e de Azamor. Os
navios de Argel cruzavam incessantemente o estreito de Gibraltar numa
desgastante luta de pirataria. As necessidades económicas do reino
acentuavam-se e o abastecimento regular das praças era muito afectado. Sobre
tudo isto crescia o poder dos Xarifes que, vindos do sul, iam reduzindo o
território sob domínio da dinastia oatácida de Fez, até que conseguiram a
unificação do país sob o governo de Mawlây Muhammad al-Shaykh (Mulei Mahamede
Xeque) em 1549. A situação
preocupava o reino, pelo que João III pretendia negociar uma aliança defensiva
com a Espanha e com o monarca oatácida contra o Xarife. Procuraram-se
informações dos avanços deste enquanto se combatiam os piratas barbarescos e
turcos junto do estreito de Gibraltar.
Domingos Lopes Barreto, feitor em Puerto de Santa Maria, em carta a
João III, datada de 9 de Julho de 1547,
relatava uma dessas escaramuças: Bernardino
[de Mendoza], capitão das galés do Imperador [comandava uma esquadra de vigia
no Estreito] veio ter a Ceita com Afonso Noronha, capitão] haverá oito dias,
para concertar com ele irem ambos a Targa a saqueá-la […] A gente que saltou em
terra, houve nela desordem, em que os mouros lhe mataram seis ou sete homens e
feriram 20 [...] De Ceuta foi com Bernardino o adail e almocadém Fernão Noronha
cada um em seu bergantim: vieram a salvamento com a gente que foi na sua
companhia [... ] A nova de navios de turcos e andarem nesta costa e no Estreito
sete fustas e bergantins e uma galeota que tem feito dano em tomarem alguns
navios de que se salvou a gente». In António Dias Farinha, Crónica de
Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), Investigação Científica Tropical,
Lisboa, 1997, ISBN 972-672-864-9.
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