«(…) E, nas minhas costas, havia sempre uma voz venenosa e sibilina a
murmurar: - Afastem-se que o homem vai passar, e que ninguém queira ser visto
na sua companhia, apiedando-se dele, nesta hora, pois é pior do que ter
peçonha. Chegara o tempo da mudança, da Viradeira, o tempo de esquecer o que
trouxera progresso à cidade e ao país e de encontrar o culpado de todos os
males, de todos os erros, de todas as usurpações, de todos os crimes. E esse
culpado só podia ter um nome: Sebastião José Carvalho Melo. Estava em
marcha uma campanha de difamação, de aviltamento do meu nome e da minha obra
contra a qual eu nada podia fazer, a não ser pedir à rainha que intercedesse em
minha defesa, ou seja, em defesa de quem servira seu pai com dedicação e
absoluta lealdade, salvaguardando os interesses da coroa e a posição de el-rei,
que nunca em mim deixou de confiar, em nome de Portugal.
A rainha acedeu ao meu pedido de exoneração de todos os cargos, aceitou
a minha retirada para Pombal e ainda me agraciou com a comenda da S. Tiago de
Lanhoso. Mas, ao mesmo tempo, soltou das prisões para cima de oitocentos
condenados, muitos deles de delito comum, que nada tinham de político no seu
cadastro civil. O povo fora posto a ferro e fogo contra o ex-ministro do Reino,
e disso me dei conta quando, passando a minha carruagem pelo meio da multidão,
a caminho da minha residência em Oeiras, ouvi insultos e palavras de chacota
que muito me feriram na dignidade e na honra. Morte ao ladrão, ao carrasco do povo, ao inimigo da coroa. Que Deus
o castigue por todo o mal que fez, eis o que agora gritavam os que
antes me louvavam e temiam. Talvez a História venha um dia a tomar o meu
partido, mas o povo, que antes me respeitara e aclamara, via agora em mim o inimigo
público que urgia humilhar e abater. Em horas como estas, um homem de Estado
caído em desgraça é bem mais vulnerável que qualquer condenado de delito comum.
Era, pois, tempo de partir, de buscar o recolhimento que a minha
avançada idade e a minha débil saúde exigiam para poder acabar os meus dias em
paz. Mas ainda faltavam a humilhação dos infindáveis interrogatórios, o corpo
em chaga, as hemorragias, as febres, os pesadelos de noite inteira, a fraqueza
do estômago, as dores e a amarga sensação de que, sempre que me interrogavam
sobre coisas de muito duvidosa relevância, era como se me fizessem subir ao
cadafalso para me decapitarem à vista da populaça enfurecida, com a maldita
mitra na cabeça, a que o povo por desprezo chama carocha. E bem mais humano teria sido tirarem-me a vida desse jeito
do que prolongarem o meu sofrimento para além do que é humanamente tolerável.
Carta do marquês de Pombal ao filho Henrique, conde de Oeiras
Meu filho do meu coração
«Tua carta me acha tão triste e
tão saudoso como só, porque não tenho ainda a consolação de tua mãe, e as
pessoas da equipagem com que devo continuar o meu caminho não têm chegado até
agora. A noite foi como podes bem crer; acrescendo-se aos trabalhos antecedentes
a separação de filhos e genros, a quem amo com tanta ternura. Não tenho, porém,
maior abatimento do que aquele com que me saí de casa. Deus que vê os meus
trabalhos, e a resignação com que os sofro, me dará força para os tolerar.
Lanço-te a minha bênção. É tudo o que posso dizer-te.
O teu pai que muito te ama»
Sebastião José
Oeiras, 6 de Março, pela manhã
Nunca percebi se existe uma porta para se entrar na História e se essa
porta poderá ser aberta para alguém como eu. Neste momento, acossado pela
suspeição e pelo desamor do povo e dos novos governantes, serei por certo o
último a vê-la ao meu alcance. De pouco me serve entrar ou não entrar no livro
da História, já que ele é sempre escrito por quem detém o poder e, nesta hora
de sofrimento pessoal profundo, não serei eu nem ninguém que me seja afecto a
ditar os seus termos. Morro um pouco mais todos os dias e estou consciente de
que esse é o desiderato de quem me odeia: fazer-me penar e padecer até à agonia
final, já que a razão de Estado recomenda, depois de tanta obra feita, que não
me conduzam a outro cadafalso que não seja o da humilhação. Entre os que perto
e longe me odeiam, imagino a bizarra figura do Cavaleiro de Oliveira na
penúria, algures nessa Europa, talvez em Itália, talvez na Holanda, planeando o
seu regresso a Lisboa após tantos anos de exílio». In José Jorge Letria, Mal por
Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.
Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
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