domingo, 26 de outubro de 2014

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Nasceu uma criança do sexo masculino, de pele branca e rosada, de cabelo escuro. A alegria dos pais estendeu-se, do alto escarpado do castelo e da Alcáçova, a todo o país. Naquele ninho de águia, para espanto futuro de muitos, nascera o "Falcão"»

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E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) Ao bom rei Afonso, entretanto, nascia-lhe uma filha, Joana, linda menina de tez de leite e belos olhos verdes que foi jurada herdeira do reino, Princesa, e um mês depois, mais dia menos dia, ao rei de Navarra, João II nascia-lhe um filho varão, Fernando, de origem marrana, por parte da mãe, uma judia, Joana Enriques, segunda mulher do rei, que toda a vida seria protector dos judeus. Ninguém adivinharia, portanto, quem seria e como seria esse jovem príncipe e que flagelo ele iria representar, com a sua cupidez cega e a intolerância do seu credo, para milhões de pessoas. Em Portugal, dentro das opções do rei, que desejava acima de tudo a paz e a concórdia, as coisas compunham-se até porque as peças do tabuleiro de xadrez do mundo se mantinham no seu lugar: os Braganças dominavam, a Corte ronronava à volta do pacífico monarca que só pensava agora na política da conquista do Norte de África, D. Isabel de Urgel nada exigira e, depois de numa fuga louca percorrer convento após convento para se esconder, alojara-se em Santa Clara definitivamente. Os filhos estavam sob protecção de Castela, da Borgonha e papal, Jaime até fora feito bispo de Pafos, até que uma notícia tenebrosa abalou a Cristandade: o sucessor de Murad II, Mahomet, em Abril de 1453, pôs cerco ao derradeiro baluarte cristão do Império do Oriente, Constantinopla. No ano anterior ele, perante as preocupações do último imperador nascido na sala de pórfiro do palácio que pertencera a Justiniano, construíra a fortaleza de Rumeli Hisar mas ninguém adivinhara a pressa do turco em aniquilar a antiga Bizâncio. O pobre Constantino IX Drageses recolhe-se em oração e suporta estoicamente o seu destino, a morte e a morte mais que solitária, não apenas a de um imperador com o seu derradeiro exército frente ao inimigo, mas a pior solidão de todas para um chefe de Estado: consigo, a morte de uma época, de uma civilização. Dizem que tudo ficou destruído, arrasado, como se o sopro dos milénios tivesse passado num segundo só, com a força do princípio dos tempos por sobre a cidade, porque as rugas do tempo também rasgam e sulcam a face das casas como a velhice a face das gentes, inexoravelmente, e ainda, às vezes, com maior crueza como se assim quisessem manifestar a sua força invencível, o poder do aniquilamento e da dissolução no pó. No mesmo ano, os Franceses derrotam os Ingleses em Castillon. Em segredo, Deus impunha o seu dedo no mapa do mundo mas lá, o ia equilibrando... Os Ingleses, em solo francês, ficam apenas com o pequeno bastião de Calais. Claro que o dinheiro move o mundo e os ex-conterrâneos de meus pais lutaram pelo seu lugar ao sol, numa concorrência feroz com os venezianos para conseguir benesses no mercado turco e, de Florença, chegaram dois primos mais, mas judeus. Como eram ricos, não residiram na judiaria. Um deles, casado com uma Roiz. Uma tarde chegou a notícia por barco. Foi o marido de Aldonça quem a trouxe: - morreu o rei de Castela. Sucedeu-lhe o filho. Chama-se Henrique e parece não ser grande coisa.
Assim fora. O rei de Portugal não adivinhava quanto esse Henrique iria participar no nosso destino e no dele... Andava por Almeirim sempre que podia e dizem as línguas compridas do paço que foi lá, depois de, extenuado, regressar de uma caçada, se dessedentara, banhara-se, repousara e, nessa noite, apertado pelo desejo procurara a rainha na sua câmara. Estava-se em Agosto, um Agosto quente, mal temperado pela brisa que apenas, e fracamente, corria à noite. Foi aí gerado o Falcão, o homem da minha história mas para as bandas de Lisboa, numa casa de um copiador de cartas de marear que, entretanto, começava a dedicar-se aos negócios e lentamente a fazer-se mercador com a comparticipação de um amigo, um Domenicus Roiz deixara também a sua semente, dois meses antes, no ventre da sua mulher, Ana. O último filho também e o único que lhe sobreviveu e no ano seguinte, em Março, no derradeiro dia do mês, com Júpiter na primeira casa regendo Castor e Pollux, em Aries, nascia um rapaz. Puseram-lhe o nome de Ambrosius, para seu bem e para seu mal, e foi o tio Gil de Jesus que o baptizou. A rainha fez a sua derradeira gravidez sem grandes problemas que os físicos notassem. Era jovem, embora fraca, mas já parira dois filhos antes e a Princesa Joana ia nos seus três anos saudáveis. Estava no paço da Alcáçova quando a acometeram as dores de parto, que foi normal.
Nasceu uma criança do sexo masculino, de pele branca e rosada, de cabelo escuro. A alegria dos pais estendeu-se, do alto escarpado do castelo e da Alcáçova, a todo o país. Naquele ninho de águia, para espanto futuro de muitos, nascera o Falcão, como a si se chamaria, o predador da nobreza abusadora e ociosa, o homem do Novo Mundo e da Nova Europa. Ali estava ele, aquele entesinho frágil, pequeno e aparentemente pouco saudável. Seria que lhe aconteceria como ao irmão? Também se chamaria João como o bisavô, o que iniciara a dinastia, o marido de D. Filipa de Lencastre. Estava-se em Maio, um belo Maio de luz dourada como os só há em Lisboa. Hoje penso que nascemos os dois para que o nosso destino se cruzasse, para que ele encerrasse o seu em Alvor e eu o meu mais longe, certamente, onde Deus me levar porque daqui em diante já não serei eu a comandar os meus passos mas o destino que é sempre imbatível e definitivo». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT