Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa
Americana
«(…) E era aqui, continua o autor, neste
asquerosíssimo charco acrescentado continuamente com os excrementos da mesma
infeliz gente, que se conservavam os escravos até serem comprados pelos
capitães negreiros. No litoral, a alimentação do escravo, apesar de lhe
adicionarem o sal necessário, que aí existia em abundância, continuava a ser
escassa e de má qualidade. Só a fome os obrigava a comer uma refeição feita à
base de farinha ou mandioca podre ou
cheia de mofo, de milho e feijão corruptos,
aos quais era adicionado, por vezes, algum peixe salgado já velho e fedorento. Os negociantes,
esperando a todo o momento a venda dos escravos, recusavam-se a gastar dinheiro
com eles.
Mal alimentados, mal vestidos, torturados, sem cuidados médicos ou de
higiene, pois apenas lhe era permitido irem em lotes lavarem-se ao mar, assim
permaneciam por tempo indeterminado, acabando grande parte por morrer. Oliveira
Mendes salienta, a este propósito, que a Luanda chegavam todos os anos cerca de
dez a doze mil escravos, dos quais só eram transportados para o Brasil cerca de
seis ou sete mil. Todos os outros acabavam por perecer, vitimados pelo cálculo
económico dos negociantes, que preferiam vê-los morrer a despender algum dinheiro
e a ter certos cuidados com a conservação da sua saúde.
Quando os negreiros se apresentavam para o negócio, a situação alterava-se
ligeiramente. Nessa ocasião, os escravos eram sujeitos a um minucioso exame por
parte dos compradores, que não se deixavam facilmente influenciar pelas
qualidades apregoadas por quem os vendia. Procuravam assegurar-se da origem dos
escravos, idade, condição física, temperamento e carácter, factores importantes
que podiam determinar decisivamente os preços. Faziam-nos correr, saltar,
gritar; examinavam-lhes os dentes, os olhos, os músculos e órgãos genitais;
observavam-lhes as atitudes e provocavam-nos com violência para descobrir se o ânimo
correspondia às aparências. Tudo exigia uma observação atenta, porque os
vendedores usavam de toda a astúcia para alterar estes dados a seu favor.
Neste sentido, com o objectivo de lhes melhorar a aparência e impressionar
o comprador, nos dias que antecediam a venda, os mercadores aumentavam-lhes a
ração; esfregavam-nos com óleo de palma, que os tornava mais negros e luzidios;
aos que já tinham barba, escanhoavam-nos bem e, como último ardil para os
encarecer, friccionavam-lhes o rosto com pedra-ume, de modo a deixá-lo macio
como se fossem imberbes. Sem o menor vestígio de barba à vista e ao tacto,
restava aos peritos negreiros recorrer ao processo de passar a língua pelo
rosto dos negros, procurando assim detectar o que, de outra maneira, lhes escaparia.
Por processo semelhante, através do sabor do suor, tentavam descobrir se o
escravo tinha ou não contraído determinadas doenças.
A escolha estava feita. O escravo dava entrada no barracão do traficante
onde iria esperar o momento de embarque. Na altura do pagamento dos direitos a
que esta transacção estava sujeita, sofriam nova marcação a fogo, no lado
direito do peito, representando as armas do rei e do país a que passavam a
pertencer. No peito, do lado esquerdo, no braço ou na perna, podiam ainda
sofrer outra marca com o sinal do senhor que os negociava e transportava para o
Brasil. Era um processo dolorosíssimo, feito com instrumento de prata
incandescente, que se pressionava sobre papel engordurado na zona do corpo
pretendida. A carne inchava com dor intensa e o estigma surgia em relevo para
toda a vida.
Seguia-se o embarque com destino aos seus novos presídios de além-mar.
Porém, antes de embarcarem recebiam o baptismo em conjunto, com um hissope,
muitas vezes já na praia, sem a mínima compreensão do que se estava a passar,
pois a pressa de partir não permitia uma catequização conveniente. Falavam-lhes
apenas de uma nova terra pertencente aos portugueses onde iriam aprender as
coisas da Fé. E posto este cuidado, suficiente para sossegar a consciência
cristã dos capitães negreiros quando mais tarde começassem a atirar cadáveres
ao mar, procedia-se à passagem dos cativos para o navio. Era um momento
difícil, em que os negros, atormentados pela imaginação e pelo afastamento da
costa, tentavam, num último esforço, libertar-se, procurando à custa de
contorções desequilibrar as almadias ou, no momento em que subiam para o barco,
aproveitar qualquer movimento em falso.
Embarcados em número muito superior àquele que o navio deveria transportar
eram amontoados na coberta ou sob a escotilha, mal se podendo mexer. O
franciscano italiano Carli, que viajou a bordo de um desses navios
carregado com 680 escravos, registou que iam cruelmente acumulados num espaço exíguo e imundo, onde homens e
dejectos se misturavam de tal modo que o calor e os odores tornavam o ambiente
intolerável. E Elias Corrêa refere-se à sórdida imundice dos únicos panos com que mal se cobrem, e enxugam no
corpo depois que a chuva, o sereno e o suor os molha; exalam um hálito
insuportável cujas partículas envolvidas se juntam ao odor da transpiração
de corpos enfermos, criando uma atmosfera onde se respira a morte que os acomete e derruba com vontade. A caridade desaparece e a sepultura é a obra de misericórdia mais
ampla que se lhes administra». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de
Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.
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