domingo, 26 de outubro de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «… sórdida imundice dos únicos panos com que mal se cobrem, e enxugam no corpo depois que a chuva, o sereno e o suor os molha; exalam um hálito insuportável cujas partículas envolvidas se juntam ao odor da transpiração…»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«(…) E era aqui, continua o autor, neste asquerosíssimo charco acrescentado continuamente com os excrementos da mesma infeliz gente, que se conservavam os escravos até serem comprados pelos capitães negreiros. No litoral, a alimentação do escravo, apesar de lhe adicionarem o sal necessário, que aí existia em abundância, continuava a ser escassa e de má qualidade. Só a fome os obrigava a comer uma refeição feita à base de farinha ou mandioca podre ou cheia de mofo, de milho e feijão corruptos, aos quais era adicionado, por vezes, algum peixe salgado já velho e fedorento. Os negociantes, esperando a todo o momento a venda dos escravos, recusavam-se a gastar dinheiro com eles.
Mal alimentados, mal vestidos, torturados, sem cuidados médicos ou de higiene, pois apenas lhe era permitido irem em lotes lavarem-se ao mar, assim permaneciam por tempo indeterminado, acabando grande parte por morrer. Oliveira Mendes salienta, a este propósito, que a Luanda chegavam todos os anos cerca de dez a doze mil escravos, dos quais só eram transportados para o Brasil cerca de seis ou sete mil. Todos os outros acabavam por perecer, vitimados pelo cálculo económico dos negociantes, que preferiam vê-los morrer a despender algum dinheiro e a ter certos cuidados com a conservação da sua saúde.
Quando os negreiros se apresentavam para o negócio, a situação alterava-se ligeiramente. Nessa ocasião, os escravos eram sujeitos a um minucioso exame por parte dos compradores, que não se deixavam facilmente influenciar pelas qualidades apregoadas por quem os vendia. Procuravam assegurar-se da origem dos escravos, idade, condição física, temperamento e carácter, factores importantes que podiam determinar decisivamente os preços. Faziam-nos correr, saltar, gritar; examinavam-lhes os dentes, os olhos, os músculos e órgãos genitais; observavam-lhes as atitudes e provocavam-nos com violência para descobrir se o ânimo correspondia às aparências. Tudo exigia uma observação atenta, porque os vendedores usavam de toda a astúcia para alterar estes dados a seu favor.
Neste sentido, com o objectivo de lhes melhorar a aparência e impressionar o comprador, nos dias que antecediam a venda, os mercadores aumentavam-lhes a ração; esfregavam-nos com óleo de palma, que os tornava mais negros e luzidios; aos que já tinham barba, escanhoavam-nos bem e, como último ardil para os encarecer, friccionavam-lhes o rosto com pedra-ume, de modo a deixá-lo macio como se fossem imberbes. Sem o menor vestígio de barba à vista e ao tacto, restava aos peritos negreiros recorrer ao processo de passar a língua pelo rosto dos negros, procurando assim detectar o que, de outra maneira, lhes escaparia. Por processo semelhante, através do sabor do suor, tentavam descobrir se o escravo tinha ou não contraído determinadas doenças.
A escolha estava feita. O escravo dava entrada no barracão do traficante onde iria esperar o momento de embarque. Na altura do pagamento dos direitos a que esta transacção estava sujeita, sofriam nova marcação a fogo, no lado direito do peito, representando as armas do rei e do país a que passavam a pertencer. No peito, do lado esquerdo, no braço ou na perna, podiam ainda sofrer outra marca com o sinal do senhor que os negociava e transportava para o Brasil. Era um processo dolorosíssimo, feito com instrumento de prata incandescente, que se pressionava sobre papel engordurado na zona do corpo pretendida. A carne inchava com dor intensa e o estigma surgia em relevo para toda a vida.
Seguia-se o embarque com destino aos seus novos presídios de além-mar. Porém, antes de embarcarem recebiam o baptismo em conjunto, com um hissope, muitas vezes já na praia, sem a mínima compreensão do que se estava a passar, pois a pressa de partir não permitia uma catequização conveniente. Falavam-lhes apenas de uma nova terra pertencente aos portugueses onde iriam aprender as coisas da Fé. E posto este cuidado, suficiente para sossegar a consciência cristã dos capitães negreiros quando mais tarde começassem a atirar cadáveres ao mar, procedia-se à passagem dos cativos para o navio. Era um momento difícil, em que os negros, atormentados pela imaginação e pelo afastamento da costa, tentavam, num último esforço, libertar-se, procurando à custa de contorções desequilibrar as almadias ou, no momento em que subiam para o barco, aproveitar qualquer movimento em falso.
Embarcados em número muito superior àquele que o navio deveria transportar eram amontoados na coberta ou sob a escotilha, mal se podendo mexer. O franciscano italiano Carli, que viajou a bordo de um desses navios carregado com 680 escravos, registou que iam cruelmente acumulados num espaço exíguo e imundo, onde homens e dejectos se misturavam de tal modo que o calor e os odores tornavam o ambiente intolerável. E Elias Corrêa refere-se à sórdida imundice dos únicos panos com que mal se cobrem, e enxugam no corpo depois que a chuva, o sereno e o suor os molha; exalam um hálito insuportável cujas partículas envolvidas se juntam ao odor da transpiração de corpos enfermos, criando uma atmosfera onde se respira a morte que os acomete e derruba com vontade. A caridade desaparece e a sepultura é a obra de misericórdia mais ampla que se lhes administra». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT